Hortência
vai de mágoas e panos. A manhã cresceu no pino do sol e a mulher
segue o caixão de seu marido. No enterro se conta ela e escassas
tias. Ninguém chora. Parece o falecido não era parente de vivente.
Hortência caminha sob a chuva, intransitiva em meio do trânsito.
Sempre ela tivera medo das viaturas, seus modos de dono, ditando
leis. Ela que nem de casa era dona. Porém, no presente desfile, ela
já perdera receios como se os pés e alcatrão tivessem trocado
intimidades.
De
fato, em vida do falecido, ela se fizera várias vezes naquela
estrada. No repetepete da noite, ela ali vinha resgatar o falecido
Filimone, descarreirado no regresso da cervejaria. Noites
cacimbolentas, ela apanhava o marido numa anônima
berma e lhe juntava as pernas aos passos. Em Filimone, o álcool
tinha uma vantagem: ele se abandonava, moço de sua esposa, filho de
suas gordas ternuras. No resto, o marido deixou registo foi de
vagabundagem. O lugar onde ele permanecera mais tempo: o ventre de
sua mãe. Aqueles anos ele vivia às custas da bondade dela.
Insensível aos pedidos dela:
—
Bêbado,
eu? Veja, Hortência: até sei andar em pé!
O
álcool lhe fermentara o sangue, invalidando-o para pai,
despromovendo-o para marido. Com a esposa Filimone só ostentava
maus-tratos.
—
Roubaram-me
tudo, mulher. Agora o único poder que me resta é fazer-te mal.
Ela
se acostumara. Nas consecutivas madrugadas Hortência saía de casa
para procurar seu homem. Ela dera a completa volta às bermas e
valetas, em todas se debruçara para apanhar o esparramado Filimone.
Nunca
mais ela terá que carregar o peso dele. Esta é a derradeira
transportação do seu corpo. Todo dinheiro ela gastara no funeral. O
carro era despesa demasiada. Assim, se arrumou o caixão em
tchova-xitaduma. As tábuas não uniam bem e a luz, às fatias,
deixava entrever, dentro, o deitado corpo. O caixão fora feito de
emendas. Hortência juntou mesa, cadeira e caixotes. Montoou aquela
madeira para lhe dar aquele escuro destino. O carpinteiro do bairro,
Virigílio Prego, não cobrou mão-de-obra.
— São
serviços de
coração: hoje morro eu, amanhã morres tu.
Além
disso eram colegas de bebida, ele e o falecido. Mas a obra ficara
imperfeita de mais. O carpinteiro se desculpava:
— Em
casa de morto não podemos dedicar muita mão. Fornece má-sorte.
Além
disso, madeira boa é para vestir a vida. E mais se escusava, com
medo do fatal assunto. Hoje morres tu, amanhã morremos todos. E se
excedia, babas e cuspes. A manga da camisola lhe acudia, em limpeza
do nariz.
— Esse
mundo está feio, mal-acabado. De modo que só vale ser visto através
da cerveja. Não concorda-me, Hortencinha?
Hortencinha,
com que então? O homem já ia de diminutivos para baixo. Afinal, a
intenção do carpinteiro era cobrar a obra por carícia? Hortência
nem resistiu, mais flácida que o embalado Filimone. Rendeu-se ao
assalto do madeireiro. Estava vazia, a mágoa lhe roubara o razoável
senso.
— É
assim mesmo, Hortência: o hoje morre hoje.
Virigílio
e o prego. Para a mulher tanto se fazia como se desfazia. O bicho faz
de morto para sobreviver. Ela fazia de bicho.
No
funeral, porém, Virigílio não constou. Hortência queria ajuda,
nunca tanto ela careceu de apoio. Paciência. Afinal, o carpinteiro
já tinha deixado adivinhar sua provável ausência. Para entendedor
como ela meia palavra já é de mais.
— Se
calhar nem hei-de poder ir. É que, nesse tempo de frio, me prende
todos os calcanhares.
No
cemitério, a viúva não chora, triste que está. Lágrima liga bem
é nos que ainda guardam esperança. As tias se aproximam da cova.
Elas choram mas sem molho da alma. Ela enxota as restantes mulheres.
Diz que quer voltar a casa, arrumar as coisas. Que coisas, se
interrogam as mulheres. E deixam-na, infelizes de não poderem mais
debicar em desgraça alheia.
Se
calhar, ela nem aceitara viuvez, diziam umas. Não se viu nem uma
aguinha de tristeza: pode ser? Hortência não se entendia, após a
morte do falecido. Requer-se que a tristeza seja parecida, capaz de
ser falada pelas mil bocas, espalhável em caóticas desordens. Mas
aquela melancolia de Hortência fazia medo de tão própria e única.
Por isso, dela todas se desavizinharam.
A
única companhia que lhe restava era o carpinteiro. Este lhe chegava
sempre a desoras, perdido o fio-de-prumo do tempo. E se passou a ver
aquilo que nunca, no bairro, se assistira. Hortência cabistonta de
bêbada, no carreiro da cervejaria. A viúva se entornava pelas
bermas. Por que motivo se entregava à bebida com tais assanhos? Quem
pode saber? Verdade é mentira que não fala a mesma língua do
pensamento. Hortência explicava:
— Ando
à procura de meu Filimone. Deve estar caído por aí.
E
assim, antes e depois de Filimone aquela mulher desconhece o sabor do
sono, em noite e descanso. Hortência soma mais olhos que fadiga? Não
há vigente testemunha. Apenas o carpinteiro interrompe a solitária
existência da viúva. Os dois somam a pessoal e intransmissível
embriaguez. E se riem, em alegrias que não são deste mundo. Breves
são os enquantos, nenhuns os encantos.
— Se
um dia eu me escorregar, dormidinha na valeta, você me apanha,
Virigílio Prego?
— Com
a certeza, Hortência. Amanhã eu, você hoje: é assim a vida...
Até
que, uma noite, o frio lembrou à viúva que um exato ano decorrera
sobre o funeral de Filimone. Hortência já nem conhecia o direito e
o avesso de sua alma sóbria. Tal morte: acontecera no verso ou no
inverso da sua verdadeira vida? Ela fechou os olhos e uma inundação
de tristeza cobriu seu corpo. Hortência ensaiou matematicar sua
vida. Mas não havia conta que fazer. Uma única ideia lhe ocupava:
havia que cerimoniar, por segunda vez, seu distante marido.
Hortência
enxugou o rosto e se decidiu pelo escuro, rumo ao cemitério. Levava
ao falecido não as consagradas oferendas, panos e farinha. Em seu
cesto seguiam cervejas, às dezenas. Ainda passou por casa do
compadre Prego a ver se ele se ajuntava ao individual cortejo. Ele
foi dizendo que sim, ela que fosse abrindo cacimbo, na frente. Ele já
iria, claro e isto-aquilo:
— Hoje
eu, amanhã todos.
Hortência
entendeu. Lhe cabia a solidão e o despovoado caminho. Chegou, se
sentou junto à cova e foi destampando as garrafas. Bebia e
entornava, seus lábios em si, lábios do falecido na terra.
— Beba,
Filimone, agora já não tenho que lhe apanhar.
Depois,
já trocadas as visões, Hortência regressou pelo escuro. Quem sabe
que percalço, se o cacimbo se humana desumanidade, levou a viúva a
se despenhar em fundo de valeta. Houve quem visse sinais de suas
roupas, entornadas no gélido fundo. Se houve quem viu, nenhuma mão
se aprontou para lhe desafligir. Foram, sim, alertar Virigílio
Prego. Ele que fosse lá, afinal Hortência era sua companhia. Mas o
carpinteiro espreitou a fria cacimba e se lembrou do calcanhar, modos
que as dores lhe espetavam quando o tempo mudava:
— Hoje
cada um. Amanhã ninguém.
Na
vala fria, Hortência vai sentindo um sono maior que a noite. Que
se passa,
pergunta ela. Estou
deitada na terra e não me chega o leito?
E ela se enrosca para caber toda no ventre da noite. Ou, quem sabe,
se ajeita para que os braços de Filimone a venham buscar?
Mia
Couto,
in Estórias
Abensonhadas
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