Estas
coisas são complicadas. Quando o Paulo Otávio disse “Maravilha!”
olhando a paisagem pintada na parede do boteco com o nome e o
telefone do pintor embaixo, o telefone com mais destaque do que tudo,
quis dizer que a pintura era maravilhosamente kitsch, entende? E
quando, num daqueles impulsos de Paulo Otávio, ele telefonou para o
pintor - Amaury - e disse que queria uma pintura dele na parede do
seu apartamento novo, estava pensando na sensação que a pintura
causaria entre seus amigos na festa de inauguração do novo
apartamento, combinando com o ventilador de teto em estilo
filme-dos-anos-quarenta-passado-em-Marrocos que desencavara num
ferro-velho e com o anão de jardim tão horroroso, mas tão
horroroso que era bonito.
Todos
dariam muita risada e diriam “Coisas de Paulo Otávio”.
Agora,
é preciso entender que quando o velho Amaury, que nunca ouviu a
palavra kitsch, recebeu o telefonema e a encomenda, decidiu que tinha
chegado a hora do seu reconhecimento e que uma pintura sua na parede
não de um boteco, mas de um doutor, um homem educadíssimo, era a
consagração, talvez o começo de uma nova carreira, já que ninguém
mais queria pintura em botecos. E quando houve o encontro entre os
dois - o velho Amaury usando gravata pela primeira vez desde o
enterro da patroa e o Paulo Otávio de macacão abóbora -, o Paulo
Otávio começou a dizer que tipo de pintura queria, mas o Amaury o
interrompeu com um gesto e disse:
-
Deixa comigo, doutor.
Há
dias não pensava em outra coisa a não ser naquela pintura, a mais
importante da sua vida. Pediu para examinar a parede, tirou medidas e
foi para casa fazer alguns esboços. “Esboços”, estranhou o
Paulo Otávio, mas não disse nada. Dois dias depois o Amaury chegou
ao apartamento, pronto para começar. Fique à vontade, a parede é
sua, disse o Paulo Otávio, mas olhando com algum temor para os
esboços que o Amaury trazia embaixo do braço e pensando “Ai, ai,
ai”. E quando, dias depois, Paulo Otávio viu o que Amaury estava
fazendo na sua parede, bateu pé e gritou que não era nada daquilo,
queria uma paisagem igual à do boteco. Mas o Amaury nem ouviu, tão
maravilhado estava com a própria obra, “A Odisseia do Homem na
Terra”, desde os tempos bíblicos até a chegada na Lua, num estilo
que combinava figurativismo e abstracionismo, tudo com muito
simbolismo, pois certamente um doutor não ia querer na sua parede
uma paisagem igual à de um boteco.
-
Pare imediatamente! - ordenou Paulo Otávio.
Mas
o Amaury nem ouviu. E nos dias seguintes, indiferente aos apelos e às
ameaças de Paulo Otávio, que inclusive tivera que atrasar o resto
da decoração do apartamento enquanto a pintura não terminava,
continuou trabalhando, convencido de que o doutor só estava nervoso
porque ainda não entendera toda a concepção da obra.
Finalmente
Paulo Otávio teve que tomar uma atitude drástica.
-
Eu vou chamar a polícia.
-
O que é isso, doutor?
-
Então pare. Agora. Nem uma pincelada a mais.
-
Mas eu estou recém no descobrimento da América.
-
Agora!
O
Amaury assinou a pintura, botou o telefone, recebeu o pagamento
combinado e se foi, deixando Paulo Otávio na dúvida: mandava
repintar a parede ou deixava como estava?
Porque
é preciso entender que, assim como existe um ponto em que o mau
gosto se transforma em kitsch e outro, ainda mais difícil de
definir, em que o kitsch volta a ser mau gosto irredimível, existe
um ponto delicadíssimo em que é impossível dizer se a intenção
do pintor - ou, no caso, do dono da parede - era o mau gosto mesmo ou
era sério, e portanto irrecuperável pelo kitsch, entende? Seja como
for, Paulo Otávio decidiu arriscar, deixou a parede como estava e só
respirou aliviado quando Vando, o primeiro a chegar na festa, começou
a pular quando viu a pintura e a gritar “Maravilha! Maravilha!”,
querendo dizer, claro, “Que horror! Que horror!”, mas no sentido
de “Maravilha! Maravilha!”. Enfim, essas coisas são complicadas.
Luís
Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam
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