Parecia
que o perigo tinha passado. Mandovi continuou vendendo cigarros
contra a opinião de dona Serena e não teve nenhum encontro
desagradável; chegou a passar perto de alguns dos homens, mas eles
nem viram ou não ligaram.
Mas
um dia, a caminho da praia para encher a carroça, Geminiano parou na
oficina e deu um recado a Apolinário. Era para ele se apresentar na
tapera.
Apolinário
parou de tocar o fole para escutar melhor, indagou:
— Como
é que é?
— É
pra você se apresentar na tapera. Estão chamando. — Apolinário
veio caminhando para a porta, limpando uma mão na outra.
— Eu
me apresentar na tapera? A troco de quê?
— Eu
mesmo não sei. Eles mandaram dar o recado, estou dando.
Apolinário
olhou para Geminiano sentado na carroça, brincando sem jeito com o
chicote, com certeza para não ter que encarar o destinatário do
recado, e sentiu uma mistura de pena com desprezo; pensou, resolveu
ficar só com a pena.
—
Agradeço o seu trabalho, Gemi. Mas não
tenho nada que fazer lá. Combino serviço é aqui na oficina.
— Eles
não querem combinar serviço não. Querem é falar com você.
— Então
piorou. Se não é para encomendarem serviço, aí é que eu não vou
mesmo.
Geminiano
fingiu estar interessado no cabo do chicote, como se já não
estivesse acostumado com ele. Por fim, fungou e disse:
— Se
eu fosse você eu ia.
— Então
vai, ora. Eu cá não vou não.
Geminiano
pensou, desistiu de insistir.
— Bem,
eu dei o recado. O que é que eu digo de volta?
— Diz
que deu o recado.
Geminiano
soltou a carroça rua abaixo, Apolinário voltou para o fole. E
quanto mais pensava no recado, mais enfezado ia ficando. O
atrevimento que se vê hoje em dia. Um homem está quieto no seu
canto, aparece um trelente com um recado travesso. Quem tem queijo
pra vender leva os queijos ao mercado. Ele é que não ia à tapera,
primeiro porque não era cachorro para atender a qualquer assovio, e
segundo porque, se os homens queriam fazer queixa de Mandovi, a
conversa podia acabar em discussão, talvez em briga, e quem briga em
casa dos outros perde a razão.
Apolinário
não ia dizer nada em casa, mas quando chegou para o almoço percebeu
que o assunto não era segredo. Dona Serena já o esperava com uma
pergunta:
— O
que é que você vai fazer, Apolinário?
— O
que é que eu vou fazer? Vou lavar as mãos e dar de comer ao
estômago.
— Não
acho graça nenhuma. Eu falo é do recado que Geminiano trouxe.
— Ah,
o recado? Já fiz.
— Fez
o quê?
—
Peguei o recado e mandei de volta. Comigo
não, violão.
Ela
mordeu o lábio, esperando; e quando viu que ele não ia explicar,
falou:
—
Estive pensando uma coisa…
Ocupado
em lavar as mãos no lavatório no canto da varanda, ele
considerou-se dispensado de perguntar em que ela estivera pensando.
Se a gente for acompanhar medo de mulher…
— … A
gente podia ir passar uns dias no sítio de meu irmão até a calma
voltar.
Apolinário
enxugou as mãos, sentou-se à mesa, apanhou um garfo de dentes
tortos, ocupou-se em desentortá-los.
—
Vamos? — disse ela trazendo-o ao
assunto.
— Não.
Ela
meio assustou-se com a brusquidão da resposta; mas no silêncio
seguinte recompôs-se e voltou:
— É
perigoso ficar aqui, Apolinário…
Ele
largou o garfo para lá e falou impaciente:
— Não
tem cabimento uma coisa dessas, Serena. Então a gente vai se enfiar
num rancho no meio do mato a troco de quê? Não matei ninguém, não
furtei. E também não gosto de roça, você sabe que não gosto.
— É
um sacrifício passageiro. Eu também não gosto de sair de minha
casa, nem na rua eu quase não vou. Mas aqui agora eu sei que não
vou ter sossego.
— Tem
cabimento não, Serena. Eu não estou aqui, para o que der e vier?
— Mas
eles são muitos, Apolinário. Tenho muito medo.
— Tem
perigo nenhum. Eles precisam é de um bom fumo forte nas ventas, e já
levaram. Se quiserem mais, esfrego mais. E vamos almoçar que é
melhor. E esse menino que não vem? Mania de sumir na hora da comida.
Dona
Serena chegou à janela, gritou para o quintal chamando Mandovi e foi
providenciar o almoço, que comeram em silêncio.
Quando
acabou, Apolinário enxaguou a boca com um gole de água do pote,
cuspiu de esguelha na parede para não molhar o chão e voltou
assoviando para a oficina.
José
J. Veiga, in A hora dos ruminantes
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