segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Mandando o recado ameaçador de volta


Parecia que o perigo tinha passado. Mandovi continuou vendendo cigarros contra a opinião de dona Serena e não teve nenhum encontro desagradável; chegou a passar perto de alguns dos homens, mas eles nem viram ou não ligaram.
Mas um dia, a caminho da praia para encher a carroça, Geminiano parou na oficina e deu um recado a Apolinário. Era para ele se apresentar na tapera.
Apolinário parou de tocar o fole para escutar melhor, indagou:
Como é que é?
É pra você se apresentar na tapera. Estão chamando. — Apolinário veio caminhando para a porta, limpando uma mão na outra.
Eu me apresentar na tapera? A troco de quê?
Eu mesmo não sei. Eles mandaram dar o recado, estou dando.
Apolinário olhou para Geminiano sentado na carroça, brincando sem jeito com o chicote, com certeza para não ter que encarar o destinatário do recado, e sentiu uma mistura de pena com desprezo; pensou, resolveu ficar só com a pena.
Agradeço o seu trabalho, Gemi. Mas não tenho nada que fazer lá. Combino serviço é aqui na oficina.
Eles não querem combinar serviço não. Querem é falar com você.
Então piorou. Se não é para encomendarem serviço, aí é que eu não vou mesmo.
Geminiano fingiu estar interessado no cabo do chicote, como se já não estivesse acostumado com ele. Por fim, fungou e disse:
Se eu fosse você eu ia.
Então vai, ora. Eu cá não vou não.
Geminiano pensou, desistiu de insistir.
Bem, eu dei o recado. O que é que eu digo de volta?
Diz que deu o recado.
Geminiano soltou a carroça rua abaixo, Apolinário voltou para o fole. E quanto mais pensava no recado, mais enfezado ia ficando. O atrevimento que se vê hoje em dia. Um homem está quieto no seu canto, aparece um trelente com um recado travesso. Quem tem queijo pra vender leva os queijos ao mercado. Ele é que não ia à tapera, primeiro porque não era cachorro para atender a qualquer assovio, e segundo porque, se os homens queriam fazer queixa de Mandovi, a conversa podia acabar em discussão, talvez em briga, e quem briga em casa dos outros perde a razão.
Apolinário não ia dizer nada em casa, mas quando chegou para o almoço percebeu que o assunto não era segredo. Dona Serena já o esperava com uma pergunta:
O que é que você vai fazer, Apolinário?
O que é que eu vou fazer? Vou lavar as mãos e dar de comer ao estômago.
Não acho graça nenhuma. Eu falo é do recado que Geminiano trouxe.
Ah, o recado? Já fiz.
Fez o quê?
Peguei o recado e mandei de volta. Comigo não, violão.
Ela mordeu o lábio, esperando; e quando viu que ele não ia explicar, falou:
Estive pensando uma coisa…
Ocupado em lavar as mãos no lavatório no canto da varanda, ele considerou-se dispensado de perguntar em que ela estivera pensando. Se a gente for acompanhar medo de mulher…
— … A gente podia ir passar uns dias no sítio de meu irmão até a calma voltar.
Apolinário enxugou as mãos, sentou-se à mesa, apanhou um garfo de dentes tortos, ocupou-se em desentortá-los.
Vamos? — disse ela trazendo-o ao assunto.
Não.
Ela meio assustou-se com a brusquidão da resposta; mas no silêncio seguinte recompôs-se e voltou:
É perigoso ficar aqui, Apolinário…
Ele largou o garfo para lá e falou impaciente:
Não tem cabimento uma coisa dessas, Serena. Então a gente vai se enfiar num rancho no meio do mato a troco de quê? Não matei ninguém, não furtei. E também não gosto de roça, você sabe que não gosto.
É um sacrifício passageiro. Eu também não gosto de sair de minha casa, nem na rua eu quase não vou. Mas aqui agora eu sei que não vou ter sossego.
Tem cabimento não, Serena. Eu não estou aqui, para o que der e vier?
Mas eles são muitos, Apolinário. Tenho muito medo.
Tem perigo nenhum. Eles precisam é de um bom fumo forte nas ventas, e já levaram. Se quiserem mais, esfrego mais. E vamos almoçar que é melhor. E esse menino que não vem? Mania de sumir na hora da comida.
Dona Serena chegou à janela, gritou para o quintal chamando Mandovi e foi providenciar o almoço, que comeram em silêncio.
Quando acabou, Apolinário enxaguou a boca com um gole de água do pote, cuspiu de esguelha na parede para não molhar o chão e voltou assoviando para a oficina.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

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