quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Ilusões

Vi esta madrugada, no quintal, dois rapazes a imitarem rolas. Um estava encavalitado sobre uma tábua, no muro, uma perna para lá, outra para cá. O outro galgara o abacateiro. Recolhia os abacates, lançava-os na direcção do primeiro, e este apanhava-os no ar, com uma habilidade de malabarista, e guardava-os num saco. Então, de repente, o que estava na árvore, meio oculto entre a folhagem (eu só lhe via os ombros e o rosto) levou à boca as mãos em concha e arrulhou. O outro riu-se, imitou-o, e era como se as aves estivessem ali mesmo, uma sobre o muro, a outra num dos ramos mais altos do abacateiro, exorcizando com o vigor do seu canto as sombras derradeiras. Este episódio fez-me lembrar José Buchmann. Vi-o chegar a esta casa com um extraordinário bigode de cavalheiro do século XIX, e um fato escuro, de corte antiquado, como se fosse estrangeiro a tudo. Vejo-o agora, dia sim, dia não, entrar pela porta de camisa de seda, em padrões coloridos, com a gargalhada larga e a alegre insolência dos naturais do país. Se não tivesse visto os dois rapazes, se apenas os tivesse escutado, acreditaria que havia rolas na madrugada úmida. Olhando para o passado, contemplando-o daqui, como contemplaria uma larga tela colocada à minha frente, vejo que José Buchmann não é José Buchmann, e sim um estrangeiro a imitar José Buchmann. Porém, se fechar os olhos para o passado, se o vir agora, como se nunca o tivesse visto antes, não há como não acreditar nele – aquele homem foi José Buchmann a vida inteira.
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

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