Vi
esta madrugada, no quintal, dois rapazes a imitarem rolas. Um estava
encavalitado sobre uma tábua, no muro, uma perna para lá, outra
para cá. O outro galgara o abacateiro. Recolhia os abacates,
lançava-os na direcção do primeiro, e este apanhava-os no ar, com
uma habilidade de malabarista, e guardava-os num saco. Então, de
repente, o que estava na árvore, meio oculto entre a folhagem (eu só
lhe via os ombros e o rosto) levou à boca as mãos em concha e
arrulhou. O outro riu-se, imitou-o, e era como se as aves estivessem
ali mesmo, uma sobre o muro, a outra num dos ramos mais altos do
abacateiro, exorcizando com o vigor do seu canto as sombras
derradeiras. Este episódio fez-me lembrar José Buchmann. Vi-o
chegar a esta casa com um extraordinário bigode de cavalheiro do
século XIX, e um fato escuro, de corte antiquado, como se fosse
estrangeiro a tudo. Vejo-o agora, dia sim, dia não, entrar pela
porta de camisa de seda, em padrões coloridos, com a gargalhada
larga e a alegre insolência dos naturais do país. Se não tivesse
visto os dois rapazes, se apenas os tivesse escutado, acreditaria que
havia rolas na madrugada úmida. Olhando para o passado,
contemplando-o daqui, como contemplaria uma larga tela colocada à
minha frente, vejo que José Buchmann não é José Buchmann, e sim
um estrangeiro a imitar José Buchmann. Porém, se fechar os olhos
para o passado, se o vir agora, como se nunca o tivesse visto antes,
não há como não acreditar nele – aquele homem foi José Buchmann
a vida inteira.
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
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