Ponho
todos os cristais ao Sol de sábado, acendo vela para Oxum e de
repente pergunto para ninguém: viver é viajar? Sim — é clichê,
mas verdadeiro —, viver é viajar. Como pergunto para ninguém, é
ninguém que responde? Ou quando se diz ninguém isso será apenas a
maneira dissimulada de referir-se a um Alguém talvez com maiúscula?
Eu não sei? Resisto à tentação de um texto todo feito inteiro de
interrogações: quero falar de viagem.
Quando
vocês estiverem lendo isto aqui, estarei viajando. E estarei bem
porque estarei viajando. Vem de longe essa sensação. Não apenas
desde a infância, viagens de carro para a fronteira com a Argentina,
muitas vezes atolando noite adentro, puxados por carro de boi, ou em
trem Maria Fumaça, longuíssima viagem até Porto Alegre, com
baldeação em Santa Maria da Boca do Monte. Outro dia, seguindo
informações vagas de parentes, remexendo em livros de História,
descobri que um de meus antepassados foi Cristóvão Pereira de
Abreu, tropeiro solitário que abriu caminho pela primeira vez entre
o Rio Grande do Sul e Sorocaba, imagino que talvez lá pelo século
XVII ou XVIII. Deve estar no sangue, portanto, no DNA. Como afirmam
que “quem herda aos seus não rouba”, está tudo certo e é assim
que é e assim que sou.
Pois
adoro viajar. Quem sabe porque o transitório que é a vida, em
viagem deixa de ser metáfora e passa a ser real? Para mim, nada mais
vivo do que ver o povo e paisagem passar e passar além de uma janela
em movimento. Talvez trouxe esta mania dos trens (janela de trem é a
melhor que existe), carros e ônibus da infância, porque mesmo em
avião hoje em dia, só viajo na janela. Quem já viu de cima Paris,
o Rio de Janeiro ou a antiga Berlim do muro sabe que vale a pena.
Topo
qualquer negócio por uma viagem. Quando mais jovem, cheguei a fazer
mais de uma vez São Paulo-Salvador de ônibus (na altura de Jequié
você entende o sentido da palavra exaustão), há três anos
naveguei São Luís do Maranhão-Alcântara num barquinho saltitante
(na maré baixa, você caminha quilômetros pelo manguezal), e
exatamente um ano atrás, já bastante bombardeado, encarei
Paris-Lisboa de ônibus, e logo depois Paris-Oslo de ônibus também.
Não por economia, a diferença de avião é mínima — mas por pura
paixão pela janela. Sábia paixão. Não fosse isso, jamais teria
comprado aquela f i ta de Nina Hagen numa lanchonete de beira de
estrada nos Países Bascos (tristes e feios) à margem dos Pireneus,
ou visto a cidadezinha onde nasceu Ingrid Bergman, num vale belíssimo
na fronteira da Suécia com a Noruega.
Para
suportar tais fadigas, é preciso não só gostar de viajar, mas
principalmente de ver. Para um verdadeiro apaixonado pelo ver, não
há necessidade sequer de fotografar, vídeo então seria ridículo.
Quando não se tem a voracidade de registrar o que se vê, vê-se
mais e melhor, sem ânsia de guardar, mostrar ou contar o visto.
Vê-se solitária e talvez inutilmente, para dentro, secretamente,
pois ninguém poderá provar jamais que viu mesmo. Além do mais a
memória filtra e enfeita as coisas. Até hoje não sei se aquela
Ciudad Rodrigo que vi pela janela do ônibus, envolta em névoas no
alto de uma colina no norte da Espanha, seria mesmo real ou metade
efeito de um Lexotan dado por meu amigo Gianni Crotti em Lisboa. Cá
entre nós, nem preciso saber.
Mando
esta da estrada, ando com o pé que é um leque outra vez. Lembro um
velho poema de Manuel Bandeira — “café com pão/ café com pão”
— recriando a sonoridade dos trens de antigamente. Pois aqui nesta
janela, além dela, passa boi, passa boiada, passa cascata, matagal,
vilarejo e tudo mais que compõe a paisagem das coisas viventes,
embora passe também cemitério e fome. Coisas belas, coisas feias: o
bom é que passam, passam, passam. Deixa passar.
Caio
Fernando Abreu, in Pequenas epifanias
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