No
outro dia eu estava traindo o meu médico com um apfelstrudel
quando comecei a pensar seriamente na maçã. Na importância da maçã
na história do mundo e nos seus significados para a humanidade,
nunca muito bem explicados. Dois pontos.
A
Bíblia não especifica qual era o fruto proibido que Adão e Eva
comeram naquele dia fatídico em que, desobedecendo a Deus, perdemos
o Paraíso e em troca ganhamos a mortalidade, o sexo e a indústria
do vestuário. Pensando bem, a única fruta que era certo que havia
no Paraíso era o figo, pois foi com folhas de figueira que cobriram
a nossa protonudez. Só muito mais tarde convencionou-se que, para
provocar tanto estrago de uma só vez, a fruta proibida do Paraíso
tinha que ser uma maçã. Como a maçã não tem propriedades
afrodisíacas nem, que se saiba, estimula a inteligência ou o
desrespeito à autoridade, conclui-se que sua reputação se deve à
sua aparência, ao seu rubor lustroso e à rigidez das suas formas,
que de algum modo simbolizam rebeldia e luxúria. A maçã é um
triunfo da sugestão sobre a verdade. Existem frutas muito mais
lúbricas, como o próprio figo e a escandalosa romã, enquanto a
maçã é recomendada para crianças e convalescentes (no erótico
“Cântico dos cânticos” ela só entra como terapia:
“Confortai-me com maçãs, pois desfaleço de amor”), e mesmo
assim a sua fama de provocadora persiste. Também não se sabe ao
certo que fruta caiu na cabeça de Newton para que ele descobrisse a
gravidade, mas na história ficou que era uma maçã. A maçã parece
que está sempre querendo nos dizer alguma coisa.
E,
no meu caso pessoal, continua induzindo à desobediência e ao
pecado. A fruta não me seduz, mas não resisto a nenhum doce feito
com maçã, que é a maçã com ainda mais culpa. Não tem sido fácil
conciliar a necessidade da dieta e do combate ao colesterol com a
minha busca do apfelstrudel perfeito. Mas todos temos uma
missão a cumprir neste mundo.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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