domingo, 18 de outubro de 2015

Jigajogas

Até hoje, não me arrependo retratando? Os dias que passamos ali foram diferentes do resto de minha vida. Em horas, andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas palmas dos tantos coqueiros macaúbas, e caçando, cortando palmito e tirando mel da abelha-de-poucas- flores, que arma sua cera cor-de-rosa. Tinha a quantidade de pás- saros felizes, pousados nas crôas e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. Nunca mais, até o derradeiro final, nunca mais eu vi o Reinaldo tão sereno, tão alegre. E foi ele mesmo, no cabo de três dias, quem me perguntou: — “Riobaldo, nós somos amigos, de destino fiel, amigos?” — “Reinaldo, pois eu morro e vivo sendo amigo seu!” — eu respondi. Os afetos. Icurí retorce as palmas. Só um bom tocado de viola é que podia remir a vivez de tudo aquilo.
Dos outros, companheiros conosco, deixo de dizer. Desmexi deles. Bons homens no trivial, cacundeiros simplórios desse Norte pobre, uns assim. Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam. Sou deste jeito. Mas Titão Passos, digo, apreciei; porque o que salvava a feição dele era ter o coração nascido grande, cabedor de grandes amizades. Ele achava o Norte natural. Quando que conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era homem bom. Titão Passos regulou um espanto: uma pergunta dessa decerto que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nunca pensou que Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo de Joca Ramiro, e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava perto, foi quem disse, risonho bobeento: — “Bom? Um messias!...” O senhor sabe: preto, quando é dos que encaram de frente, é a gente que existe Doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que tudo era falante, ai, sei.
De manhã, o rio alto branco, de neblim; e o que sabe ser mais agradecida. Ao que, em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o Reinaldo se aproximou. Parecia que ele não gostava de me ver em comprida conversa amiga com os outros, ficava quasezinho amuado. Com o tempo dos dias, fui conhecendo também que ele não era sempre tranquilo igual, feito antes eu tinha pensado. Ah, ele gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, vis- to que não fosse obedecido, com as sete-pedras. Aquela força de opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas eu concordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem, sem tal nem razão, moleza no diário, coisa que até me parece ser parente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardo garboso, tão governador, assim no sistema pelintra, que preenchia em mim uma vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal. Talvez também seja. Anta entra n’água, se rupêia. Mas, não. Era não. Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites. O senhor entenderá, agora ainda não me entende. E o mais, que eu estava criticando, era me a mim contando logro — jigajogas.
Guimarães Rosa, in Grande Sertão: Veredas

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