Até
hoje, não me arrependo retratando? Os dias que passamos ali foram
diferentes do resto de minha vida. Em horas, andávamos pelos matos,
vendo o fim do sol nas palmas dos tantos coqueiros macaúbas, e
caçando, cortando palmito e tirando mel da abelha-de-poucas- flores,
que arma sua cera cor-de-rosa. Tinha a quantidade de pás- saros
felizes, pousados nas crôas e nas ilhas. E até peixe do rio se
pescou. Nunca mais, até o derradeiro final, nunca mais eu vi o
Reinaldo tão sereno, tão alegre. E foi ele mesmo, no cabo de três
dias, quem me perguntou: — “Riobaldo, nós somos amigos, de
destino fiel, amigos?” — “Reinaldo, pois eu morro e vivo sendo
amigo seu!” — eu respondi. Os afetos. Icurí retorce as palmas.
Só um bom tocado de viola é que podia remir a vivez de tudo aquilo.
Dos
outros, companheiros conosco, deixo de dizer. Desmexi deles. Bons
homens no trivial, cacundeiros simplórios desse Norte pobre, uns
assim. Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de
paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e
fácil se contentam. Sou deste jeito. Mas Titão Passos, digo,
apreciei; porque o que salvava a feição dele era ter o coração
nascido grande, cabedor de grandes amizades. Ele achava o Norte
natural. Quando que conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era
homem bom. Titão Passos regulou um espanto: uma pergunta dessa
decerto que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nunca pensou que
Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo de Joca Ramiro,
e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava perto, foi quem
disse, risonho bobeento: — “Bom? Um messias!...” O senhor sabe:
preto, quando é dos que encaram de frente, é a gente que existe
Doçura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da
minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. Como no tempo em que
tudo era falante, ai, sei.
De
manhã, o rio alto branco, de neblim; e o que sabe ser mais
agradecida. Ao que, em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o
Reinaldo se aproximou. Parecia que ele não gostava de me ver em
comprida conversa amiga com os outros, ficava quasezinho amuado. Com
o tempo dos dias, fui conhecendo também que ele não era sempre
tranquilo igual, feito antes eu tinha pensado. Ah, ele gostava de
mandar, primeiro mandava suave, depois, vis- to que não fosse
obedecido, com as sete-pedras. Aquela força de opinião dele mais me
prazia? Aposto que não. Mas eu concordava, quem sabe por essa
moleza, que às vezes a gente tem, sem tal nem razão, moleza no
diário, coisa que até me parece ser parente da preguiça. E ele, o
Reinaldo, era tão galhardo garboso, tão governador, assim no
sistema pelintra, que preenchia em mim uma vaidade, de ter me
escolhido para seu amigo todo leal. Talvez também seja. Anta entra
n’água, se rupêia. Mas, não. Era não. Era, era que eu gostava
dele. Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que
vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites. O senhor
entenderá, agora ainda não me entende. E o mais, que eu estava
criticando, era me a mim contando logro — jigajogas.
Guimarães
Rosa,
in Grande
Sertão: Veredas
Nenhum comentário:
Postar um comentário