Por
que a morte me estarrece assim, como se fosse a primeira vez, como se
nunca antes? A rara morte, três ou quatro. Com as outras, tudo
normal ou quase: o choque. A introspecção com uma consolação
filosofante. O apego maior a Deus. A cristalização da dor, pequenas
pedras que vou guardando na minha mesa, de vez em quando tomo uma,
sinto-lhe a forma, o calor, aperto-a com força na gruta da mão.
Devolvo-a a seu lugar. Mas essas três ou quatro mortes que me
arremeteram à infância, a certas noites de tamanha fragilidade.
Tamanho medo, como se não fosse amanhecer mais.
A
memória se abre na mesa, baralho de cartas marcadas, escolho uma
assim ao acaso. Este é um jantar na casa dos B.M., foi em 43? Ou em
44? Não importa. E.V. chega com uma capa de chuva, cachecol
azul-marinho e chapéu desabado, faz frio. Chegam alguns colegas da
faculdade, alguém me entrega um violão, toco mal, mas o que é bem
ou mal nessa idade? O calor do vinho, o calor da glória que vinha
dele, tudo era importante, ah! Que emoção quando cantamos a cantiga
da Academia, os versos se referiam à guerra: Quando
se sente bater/No peito heroica
pancada/Deixa-se a folha dobrada/Enquanto se vai morrer.
E.V.
faz perguntas sobre a participação dos estudantes na Força
Expedicionária: sim, vários dos nossos já tinham partido, estavam
lutando na Itália. Um poeta se levanta e a voz embargada fala do
amor e da morte enquanto, emocionadíssima, eu faço no violão um
grave fundo musical. E.V. elogiou o poema, elogiou meu violão mas
reagiu na hora: éramos tão jovens, que conversa era essa de
desencanto, de pessimismo, que horror! estávamos mais intoxicados do
que os românticos do romantismo. “Vocês ainda vão ver tanta
coisa, meninos, vão viver tanto e viver é tão bom. Tebas não tem
uma porta, mas mil e nessa idade estão todas abertas!”
Fiquei
olhando meu copo: através do cristal a vida ficava tão
transparente.
Lygia
Fagundes Telles,
in A
disciplina do amor
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