sábado, 9 de maio de 2015

Bobos

O bobo daquela corte tivera um acidente de trabalho – o Rei não entendera uma piada e mandara executá-lo – e o posto estava vago. O Procurador Real foi encarregado de procurar um novo bobo. Reuniu-se com seus assessores para fazer um levantamento do mercado de bobos.
- Quem é que está disponível?
- Bem... Tem o Gros.
- Quem é que está disponível?
- Bem... Tem o Gros.
- Ele não estava com o rei da Saxônia?
- Foi despedido. O rei queria piadas novas sobre chulé e flatulência e ele estava se repetindo.
- Hmmm. Decadente. Não se consegue o Gubio?
- Acho difícil. Está fazendo grande sucesso na Lombardia. É o reino mais divertido da Europa, atualmente. Eles não o largam.
- E o velho Plim?
- Ultrapassado. Muito trocadilho, imitação de galinha... Ninguém mais aguenta.
- Tem um cara novo... – interveio um dos assessores.
- Quem?
- Serbo, o Croata.
- Onde é que ele já trabalhou?
- Fez um teste na corte da Bulgária. Bom material. Fino. Inteligente. Não aprovou porque o rei dormiu.
- Não sei...
- Quem sabe a gente conversa com ele? Sem compromisso.
- Mandem buscá-lo.
Serbo, o Croata, foi localizado numa caravana de saltimbancos na Bavária. Foi chamado com urgência e em menos de dois meses apresentava-se ao Procurador Real, com seu alaúde e seu baú de truques. Era moço e entusiasmado.
- O que é que você faz? – perguntou o Procurador Real.
- Tudo. Só não engulo espada.
- Imitações?
- Faço uma galinha imitando um homem.
- Isso é diferente...
- Também canto, danço, faço mágica e me atiro de cabeça na parede. Com bom gosto, é claro.
- Ficou combinado que Serbo ficaria em experiência durante um mês. Se agradasse o Rei, seria incorporado à Corte. Ganharia comida, bebida e um canto só seu no canil. Antes de começar, quis saber:
- Há algum assunto proibido?
- Nenhum. Fora a papada da Rainha, nenhum.
- Posso fazer piada sobre tudo?
- Pode.
- A cara do Rei? O cavalo do Rei?
- Tudo.
- Dizer que o Rei é gato, burro, porco, cachorro?
- Pode até chamá-lo de animal. O bobo pode dizer tudo para o Rei. Na cara. O rei só não gosta de sutileza.
- Como, sutileza?
- Sugestão. Insinuação. Aí ele manda cortar a sua cabeça.
Serbo, o Croata, engoliu em seco. Apalpou a cabeça e comentou.
- Seria uma pena. Somos muito ligados...
- Outra coisa – disse o Procurador Real.
- O que?
- Não fale mal de arqueiros.
- Arqueiros?
- O Rei pertence à Excelsa Irmandade dos Arqueiros Reais. Não admite piada sobre arqueiros. Tudo menos arqueiros. Agora vá se preparar para a sua primeira apresentação.
O bobo saiu enumerando nos dedos, para não esquecer, as três coisas proibidas. Papada, sutileza, arqueiros. Papada, sutileza, arqueiros...
No começo da apresentação de estreia de Serbo, o Croata, houve um momento difícil. Foi uma charada em forma de verso que o bobo propôs: “Se o erro de um bobo é bobeada, o erro de um Papa é...” A Rainha ficou tesa no trono e o Rei quase levantou. Mas o bobo completou: “...impossível”. Todos respiraram aliviados. O resto da apresentação foi um sucesso. Nunca o Rei foi tão insultado.
O bobo chamou o Rei de tudo. Falou mal dos seus ministros, um por um. Criticou as orelhas de um, o bigode de outro, a barriga de um terceiro. O Rei dava gargalhadas. Todos davam gargalhadas.
- O que é que o povo diz às minhas costas, bobo? – perguntou o Rei.
- Não querem ser injustos, majestade. Querem vê-lo pelas costas antes de dizerem qualquer coisa.
Mais risadas.
- O povo quer ver sua caveira, majestade.
- O que?
- Para terem certeza de que os ossos são fortes e vossa majestade viverá muito.
- Ah...
- Majestade – continuou Serbo, preparando o seu gran finale, uma balada safada com cem variações picarescas em torno do bacalhau – responda se puder: qual é o peixe que mais agrada à mulher?
O Rei ficou sério de repente. Chamou o guarda e ordenou:
- Tranquem-no. Ele será decapitado ao amanhecer.
Para o Procurador Real, enquanto o bobo era levado para a masmorra, estupefato e arrastando seu alaúde, o Rei perguntou:
- Ele sabia que não era para criticar os arqueiros?
- Sabia.
- Pois então. Este reino é liberal. O bobo pode dizer tudo. Mas tem que respeitar as regras. Decapitem-no. E arranjem outro bobo.
O Procurador Real foi procurar o bobo na masmorra. Falou:
- Eu disse que não era para ser sutil...
- Mas o que foi que eu fiz?
- Criticou os arqueiros.
- Como? Eu ia falar em bacalhau!
- Bacalhau? O Rei pensou que fosse namorado.
O bobo sacudiu a cabeça. Condenado por um erro de interpretação. Só quando o Procurador Real já estava saindo pela porta da masmorra é que ele se lembrou de perguntar:
- E namorado, o que é que tem que ver com arqueiro?
Mas era tarde. A porta se fechou.
Luís Fernando Veríssimo

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