O
bobo daquela corte tivera um acidente de trabalho – o Rei não
entendera uma piada e mandara executá-lo – e o posto estava vago.
O Procurador Real foi encarregado de procurar um novo bobo. Reuniu-se
com seus assessores para fazer um levantamento do mercado de bobos.
-
Quem é que está disponível?
-
Bem... Tem o Gros.
-
Quem é que está disponível?
-
Bem... Tem o Gros.
-
Ele não estava com o rei da Saxônia?
-
Foi despedido. O rei queria piadas novas sobre chulé e flatulência
e ele estava se repetindo.
-
Hmmm. Decadente. Não se consegue o Gubio?
-
Acho difícil. Está fazendo grande sucesso na Lombardia. É o reino
mais divertido da Europa, atualmente. Eles não o largam.
-
E o velho Plim?
-
Ultrapassado. Muito trocadilho, imitação de galinha... Ninguém
mais aguenta.
-
Tem um cara novo... – interveio um dos assessores.
-
Quem?
-
Serbo, o Croata.
-
Onde é que ele já trabalhou?
-
Fez um teste na corte da Bulgária. Bom material. Fino. Inteligente.
Não aprovou porque o rei dormiu.
-
Não sei...
-
Quem sabe a gente conversa com ele? Sem compromisso.
-
Mandem buscá-lo.
Serbo,
o Croata, foi localizado numa caravana de saltimbancos na Bavária.
Foi chamado com urgência e em menos de dois meses apresentava-se ao
Procurador Real, com seu alaúde e seu baú de truques. Era moço e
entusiasmado.
-
O que é que você faz? – perguntou o Procurador Real.
-
Tudo. Só não engulo espada.
-
Imitações?
-
Faço uma galinha imitando um homem.
-
Isso é diferente...
-
Também canto, danço, faço mágica e me atiro de cabeça na parede.
Com bom gosto, é claro.
-
Ficou combinado que Serbo ficaria em experiência durante um mês. Se
agradasse o Rei, seria incorporado à Corte. Ganharia comida, bebida
e um canto só seu no canil. Antes de começar, quis saber:
-
Há algum assunto proibido?
-
Nenhum. Fora a papada da Rainha, nenhum.
-
Posso fazer piada sobre tudo?
-
Pode.
-
A cara do Rei? O cavalo do Rei?
-
Tudo.
-
Dizer que o Rei é gato, burro, porco, cachorro?
-
Pode até chamá-lo de animal. O bobo pode dizer tudo para o Rei. Na
cara. O rei só não gosta de sutileza.
-
Como, sutileza?
-
Sugestão. Insinuação. Aí ele manda cortar a sua cabeça.
Serbo,
o Croata, engoliu em seco. Apalpou a cabeça e comentou.
-
Seria uma pena. Somos muito ligados...
-
Outra coisa – disse o Procurador Real.
-
O que?
-
Não fale mal de arqueiros.
-
Arqueiros?
-
O Rei pertence à Excelsa Irmandade dos Arqueiros Reais. Não admite
piada sobre arqueiros. Tudo menos arqueiros. Agora vá se preparar
para a sua primeira apresentação.
O
bobo saiu enumerando nos dedos, para não esquecer, as três coisas
proibidas. Papada, sutileza, arqueiros. Papada, sutileza,
arqueiros...
No
começo da apresentação de estreia de Serbo, o Croata, houve um
momento difícil. Foi uma charada em forma de verso que o bobo
propôs: “Se o erro de um bobo é bobeada, o erro de um Papa é...”
A Rainha ficou tesa no trono e o Rei quase levantou. Mas o bobo
completou: “...impossível”. Todos respiraram aliviados. O resto
da apresentação foi um sucesso. Nunca o Rei foi tão insultado.
O
bobo chamou o Rei de tudo. Falou mal dos seus ministros, um por um.
Criticou as orelhas de um, o bigode de outro, a barriga de um
terceiro. O Rei dava gargalhadas. Todos davam gargalhadas.
-
O que é que o povo diz às minhas costas, bobo? – perguntou o Rei.
-
Não querem ser injustos, majestade. Querem vê-lo pelas costas antes
de dizerem qualquer coisa.
Mais
risadas.
-
O povo quer ver sua caveira, majestade.
-
O que?
-
Para terem certeza de que os ossos são fortes e vossa majestade
viverá muito.
-
Ah...
-
Majestade – continuou Serbo, preparando o seu gran
finale,
uma balada safada com cem variações picarescas em torno do bacalhau
– responda se puder: qual é o peixe que mais agrada à mulher?
O
Rei ficou sério de repente. Chamou o guarda e ordenou:
-
Tranquem-no. Ele será decapitado ao amanhecer.
Para
o Procurador Real, enquanto o bobo era levado para a masmorra,
estupefato e arrastando seu alaúde, o Rei perguntou:
-
Ele sabia que não era para criticar os arqueiros?
-
Sabia.
-
Pois então. Este reino é liberal. O bobo pode dizer tudo. Mas tem
que respeitar as regras. Decapitem-no. E arranjem outro bobo.
O
Procurador Real foi procurar o bobo na masmorra. Falou:
-
Eu disse que não era para ser sutil...
-
Mas o que foi que eu fiz?
-
Criticou os arqueiros.
-
Como? Eu ia falar em bacalhau!
-
Bacalhau? O Rei pensou que fosse namorado.
O
bobo sacudiu a cabeça. Condenado por um erro de interpretação. Só
quando o Procurador Real já estava saindo pela porta da masmorra é
que ele se lembrou de perguntar:
-
E namorado, o que é que tem que ver com arqueiro?
Mas
era tarde. A porta se fechou.
Luís
Fernando Veríssimo
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