Mas, para
Tertuliano, nada era incerto ou duvidoso quanto à oitava brotadura de sua filha
temporã Belinha, de pia Cibele da Purificação, legítima esposa de Saturnino
Bororó, que jamais fizera um filho homem, fosse nela, fosse em qualquer outra
com quem tenha se empernado. Gala feminil fora de qualquer equívoco, conjuntura
trivial não apenas na Ilha como em toda parte, sina a que têm de submeter-se,
sem remédio ou reclamação inútil, os por ela recrutados. Tertuliano, porém, não
tinha dúvida de que era homem seu novo neto, depois de sete meninas
encarreiradas. Altina Pequena, aparadeira que nunca sofreu derrota nem nos
partos mais enredados, dos três mil e tantos que dizia o povo haver ela
pilotado, e que de seu riscado entendia tanto que, só de olhar para uma
criatura tida por todos como donzela recatada, adivinhava por mil indícios
sutis que ela estava embarrigada, pois que nascera com esse dom e era
autoridade em todas as reproduções, das de galinha poedeira às de mulher
parideira, visitara Belinha nas benzeduras, nos banhos de folha e no
cumprimento de outros preceitos da correta gestação e nem dava confiança de
responder a quem perguntava se era homem ou mulher. Somente quando insistiam
era que, com o semblante mortificado próprio do sábio afrontado pela ignorância,
alisava a barriga de Belinha, dava um muxoxo e proclamava que aquele bichinho
lá dentro era fêmea, fêmea, fêmea, tão certo quanto o sábado sucede a sexta,
desde que Deus criou o mundo. Tertuliano se recordava de haver estado presente
em diversas dessas ocasiões e de ter fitado a cara sarapintada de Altina e seus
olhos como dois parafusinhos de pontas salientes para fora, a boca franzida de
quem mordeu um caju verde e o queixo empinado como uma bandeira mastreada.
Qualquer um, mesmo ele, ou até sobretudo ele, se zumbriria a tão imperiosa
autoridade, mas, logo da primeira vez em que ouviu a previsão de Altina, foi
surpreendido por um sopro que recebeu no ouvido, sem atinar de onde, e que lhe
fez o peito palpitar. Não sabia como, mas lhe veio a certeza de que a
irrepreensível ciência de Altina dessa vez se malograra, embora sem em nada
desmerecer-se, antes pelo contrário, porque é sinal do amor divino que Ele
conceda a graça de mostrar à soberba humana que a perfeição é atributo do Santo
Espírito, assim salvando almas de outra forma extraviáveis por orgulho e
vaidade, no traiçoeiro caminho de Lúcifer. Desse dia em diante, sem que ele nem
estivesse com o assunto na cabeça, um belo instante lá batia o sopro, por vezes
possante como uma bufa de mula, por vezes delicado como um suspiro de
beija-flor, e quase sempre trazendo novidades, a maior parte impossível de
destrinchar sem muitas suposições precárias, até porque só perduravam algumas
das palavras sopradas e as outras se esvaíam da memória, sugadas para fora por
uma espécie de redemoinho irresistível, restando apenas fiapos aqui e ali. Que
era homem o sopro repetia invariavelmente, parecia até o bom-dia que toda
pessoa educada diz a quem encontra de manhã, mesmo que marido e mulher há
quantos anos lá sejam. Tertuliano aprendeu a deixar de lado os fiapos, não
somente porque não tinha certeza do que queriam dizer, como porque, ainda que
viesse a viver muito mais para a idade em que já estava, haveria de ter morrido
bem antes dos acontecimentos que, tudo fazia crer, os sopros prenunciavam.
João Ubaldo Ribeiro, in O albatroz azul
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