sexta-feira, 4 de julho de 2014

Uma nova moral

“A respeitabilidade, a regularidade, a rotina - toda a disciplina de ferro forjada na moderna sociedade industrial - atrofiaram o impulso artístico e aprisionaram o amor de forma tal que não mais pode ser generoso, livre e criador, tendo de ser ou furtivo ou pedante. Aplicou-se controle às coisas que mais deveriam ser livres, enquanto a inveja, a crueldade e o ódio se espraiam à vontade com as bênçãos de quase toda a bisparia. O nosso equipamento instintivo consiste em duas partes - uma que tende a beneficiar a nossa própria vida e a dos nossos descendentes, e outra que tende a atrapalhar a vida dos supostos rivais. Na primeira incluem-se a alegria de viver, o amor e a arte, que psicologicamente é uma consequência do amor. A segunda inclui competição, patriotismo e guerra. A moral convencional tudo faz para suprimir a primeira e incentivar a segunda. A moral verdadeira faria exatamente o contrário.
As nossas relações com os que amamos podem ser perfeitamente confiadas ao instinto; são as nossas relações com aqueles que detestamos que deveriam ser postas sob o controle da razão. No mundo moderno, aqueles que de fato detestamos são grupos distantes, especialmente nações estrangeiras. Concebemo-las no abstrato e engodamo-nos para crer que os nossos atos (na verdade manifestações de ódio) são cometidos por amor à justiça ou outro motivo elevado. Apenas uma forte dose de ceticismo pode rasgar os véus que nos ocultam essa verdade. Uma vez que o consigamos, poderíamos começar a construir uma nova moral, não baseada na inveja e na restrição, mas no desejo de uma vida pródiga e a percepção de que outros seres humanos são um auxílio e não um obstáculo, uma vez curada a loucura da inveja. Não é uma esperança utópica; foi parcialmente realizada na Inglaterra isabelina. Poderia ser realizada amanhã se os homens aprendessem a procurar a própria felicidade em lugar de provocar a desgraça alheia. Não se trata de moral impossivelmente austera, e no entanto a sua adoção transformaria o planeta num paraíso.”
Bertrand Russell, in Ensaios Céticos: Do Valor do Ceticismo

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