Ilustração: Rodrigo Rosa
Há
alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —,
enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que
chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me
refiro.
Antes
que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer
ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me
entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente
imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns
silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de
"minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De
repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de
vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons
rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por
trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me
sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se
armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha
certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os
olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e
suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah
você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois.
Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca
mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair
daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma
face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia
atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto
de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto:
"Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela,
com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no
encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão
basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele para. Os dois se olham.
Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De
mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites,
servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que
soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem
perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só
compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em
pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito joias
encravadas no dia-a-dia.
Era
isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha
opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena
epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu
trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes
dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei
um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de
mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos
meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a
cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim,
posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que
reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E
quase paro de sentir fome.
Caio
Fernando Abreu, in O
Estado de S. Paulo, de 22/04/1986
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