quinta-feira, 4 de abril de 2013

Tu lembra do Leocádio?

Imagem: Google

Leocádio mudou-se pra melhor casa da rua dos Artistas. Era um sujeito com cara de próspero, pinta de que faturava fácil. Desses picaretas que, nos dias de democracia relativa, se auto definiriam como um “realista”, dotado de impressionante imaginação criadora.
Desde a mudança, o Leocádio perturbou a rua: móveis inacreditáveis, comprados na longínqua Copacabana.
O Lindauro, que tava dando uma espiada na mudança, viu um troço estranho:
- Ué... quê aquilo ali?
Deysinha, sua digna esposa, deu vazão a sua cultura:
- Uma mesinha-de-centro, querido. Última moda.
E o lindauro, boçal porém sincero:
- Sei não... nesse centro os caboclo deve ser tudo anão.
Mas o que impressionou mesmo foi o rabo-de-peixe: vermelho, glamuroso, bárbaro, deixou todo mundo sem fala.
O carro parou macio, macio, e as comadres vieram corujar atrás da veneziana: os garotos interromperam a pelada e a porta do buteco ficou assim de gente.
Foi quando saltou do rabo-de-peixe a Jurema, mulher do emergente Leocádio:
- Rapaz, olha a traseira!
Num tem preço! Pode escrever aí: um lombo desses num tem preço!
- Garçom, minhas gotas!
Já pensou o pisca-pisca funcionando?
- Ô Penteado, cumé aquela máxima de Platão?- Da feijoada ao pavão, o rabo encerra a questão.
Leocádio, apesar de exibir um queixo estilo AI-5, não impressionou tão bem:
- quem esse cara pensa que é?
- deve ser do tipo que acha que faz xixi um metro certo.
- vou lá perguntar se ele é que é o Janô Pacheco.
- Boa, hê, hê... pergunta se esse panaca faz chover...
Com essas pequenas implicâncias, o pessoal ia à forra em cima do Leocádio, que atacava de superior.
- cambada de pés-rapados, Jurema.
E a Jurema nem-te-ligo. Mulher calmíssima, sabia que era boa e que deixava tudo que era mastro embandeirado.
Aos domingos, Leocádio, binóculo a tiracolo, esperava a esposa acomodar o rabo no rabo-de-peixe e tocava pro Jóquei enquanto a turma ia pro Maracanã.
- aqula besta do... cumé mesmo o nome dele?... é só farol.
- claro! Um dia eu compro um carro desses e aí que eu quero ver.
Só o Penteado, tremendo gozador, mantinha o espírito esportivo:
- Quem nasceu pra Austin nunca chega a Chevrolet!
Me lembro como se fosse hoje de um feriado, cadeiras na calçada, pipas no alto, um rádio tocando “Cinco companheiros”... O buteco tava completamente lotado, um custo para conseguir chegar no balcão. Aquele tumulto de traz mais uma, tá faltando um copo, mé dá um Lincoln (de ponta a ponta o melhor) e fósforo, tirar a água do joelho, manda um salaminho, mulher de amigo meu pra mim..., dizem que o Castilho não joga, calma no Brasil! Parto-lhe a cara, sem colarinho, cadê o palito, aquela que matou o guarda, aí o papagaio virou pro gato e, vou vomitar, borboleta na cabeça, atchhimm!, nunca mais vou esquecer aquela ingrata, soltaram um daqueles, sabe quem morreu, vai-se rodando...
O rabo-de-peixe veio vindo e parou. Macio, macio. Leocádio saltou, contornou o carro e, num gesto de extrema arrogância, abriu a porta pra sua patroa. Jurema escorregou pelo assento aquilo tudo, de óculos escuros, sensuais sandálias de salto-alto e maiô preto. Mulher calmíssima, com a maior naturalidade, ajeitou a parte detrás do maiô, empinando um nadinha a mala esplêndida.
Mala, meus prezados, pelo seguinte: o choque sofrido pela rapaziada foi tão grande que só uma semana depois, numa rabada, é que surgiram os primeiros comentários, mas como havia a bordo um enxame das respectivas caras-metades, o papo ficou meio automobilístico:
- Que mala, hein?
- E os faróis? Rabo tão bonito, a gente esquece de falar nos faróis...
- Em matéria de acabamento, eu... como direi?... hum... eu... eu me acabava!
Até o Pelópidas, a tranquilidade em pessoa, fez sua piadinha, olhando de banda pra Heronda:
- Leocádio de rabo-de-peixe e de ford-bigode!
Quase todos os moradores da rua deram sua modesta contribuição, anônima e legítima, pra maior glória de Jurema: tanajura, reboque, terra-da-promissão, zabumba, pudim-de-pão, unidos venceremos, corcunda ao sul! Ponto-de-vista, almofadão, descansa-queixo, jacadura, e outros um pouquinho mais ignorantes.
Numa tarde de agosto, mês de desgosto, um ou outro bonde sonolento passando na Pereira Nunes, Leocádio e Jurema foram embora pra Co-pa-ca-ba-na. Ele não deixou saudade, mas, até hoje, dá assunto na rua dos Artistas e quem não estiver por dentro do lance estranha a conversa:
- Tu lembra do Leocádio?
- E como! Que rabos!
Aldir Blanc, in Rua dos Artistas e Arredores

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