quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Cada um acode ao que lhe mais dói

Que graça será esperardes de mim propósitos, em cousa que os não tem para comigo? Pois, ainda que queira, não posso o que quero; que um sentido remontado, de não pôr pé em ramo verde, tudo lhe sucede assim; e ‘cada um acode ao que lhe mais dói’; e mais eu, que o que mais me entristece é contentamento ter, pois fujo dele, que minh'alma o aborrece, porque lhe lembra que é virtude de viver sem ele. Porque já sabeis que mágoa é: ‘vê-lo hás e não o paparás’. Por fugir destes inconvenientes, 

Toda a cousa descontente
contentar-me só convinha,
de meu gosto;
que, o mal de que sou doente,
sua mais certa mesinha
é desgosto.

Já ouviríeis dizer: ‘Mouro, o que não podes haver, dá-o pela tua alma’. O mal sem remédio, o mais certo que tem, é fazer da necessidade virtude; quanto mais, se tudo tão pouco dura como o passado prazer. Porque, enfim, allegados son iguales los que viven por sus manos, etc. A este propósito, pouco mais ou menos, se fizeram umas voltas a um mote de enche-mão, que diz por sua arte, zombando mais, que não de siso (que toda a galantaria é tirá-la donde se não espera), o qual crede que tem mais que roer do que um praguento. Portanto recuerde el alma adormida, e mande escumar o entendimento, que, doutra maneira, de fuera dormiredes, pastorcico. E o meu senhor diz assim:

Dava-lhe o vento no chapeirão,
quer lhe dê, quer não.

Bem o pode revolver,
que o vento não traz mais fruto;
e mais vento é sentir muito
o que, enfim, fim há-de ter.
O melhor, é melhor ser,
que o vento no chapeirão,
quer lhe dê, quer não. 

Luís Vaz de Camões, in Cartas

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