sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Serenidade ante a morte

Júlio Cano, um dos maiores homens que já existiram e cuja glória nada sofreu, nem mesmo por ter nascido neste século, teve uma longa discussão com Caio Calígula. Como ele se retirasse, o novo Faláride lhe disse: “Para que não te iludas nem ao menos com uma vã esperança, ordenei que te executem.” “Agradeço-te, excelente príncipe”, respondeu Cano. Não sei qual era seu pensamento, porque essas palavras podem ser vários sentidos: queria ele ultrajar o príncipe e mostrar toda a crueldade de uma tirania sob a qual a morte era um benefício? Ou censurava-lhe o absurdo de obrigar todos os dias a agradecerem-lhe, aqueles cujos filhos ele matara, assim como aqueles de quem confiscara a fortuna? Ou enfim via ele na morte uma libertação, que aceitava com prazer? Qualquer que seja a resposta, ela provém de uma grande alma.
Dir-se-ia: Caio Calígula podia depois disso ordenar que o deixassem viver. Mas cano não tinha este receio: sabia-se que desde que ele dera semelhantes ordens, Calígula manteria sua palavra. Acreditarias tu que os dez dias que decorreram até seu suplício, Cano os passou sem nenhuma inquietude? Na verdade, não parece verossímil o que este grande homem disse, o que fez e a tranquilidade que manteve. Ele jogava o “jogo dos ladrões”, quando o centurião, passando com um grupo de condenados, o convidou a se levantar e a segui-lo: então ele contou seus pontos e disse a seu adversário: “Atenção! Depois de minha morte, não digas que ganhaste!” Depois, fazendo um sinal ao centurião: “Tu serás testemunha – disse-lhe – de que eu tenho a vantagem de um ponto.” Crê tu que Cano dava tanta importância ao seu jogo? Ele zombava do carrasco. Seus amigos estavam consternados em perder um tal homem. “Por que esta tristeza? – disse-lhes -  Vós vos perguntais se a alma é imortal; eu irei sabe-lo agora mesmo.” E até ao último instante ele não cessou de procurar a verdade e de perguntar à sua própria morte a solução do grande problema. Seu filósofo o acompanhava; já o aproximavam do túmulo, onde cada dia eram oferecidos sacrifícios a César, nosso deus; “Em que pensas neste momento, Cano? – perguntou-lhe o filósofo. – Em que disposição de espírito te encontras?” “Tenho – respondeu Cano – a intenção de observar neste instante tão breve se vou sentir minha alma elevar-se.” E ele prometeu, caso descobrisse alguma coisa, tornar a voltar, a fim de instruir seus amigos sobre  sorte das almas.
Eis a tranquilidade no meio da tempestade! Não é digno de imortalidade este homem que procura na sua própria morte uma prova da verdade; que nos últimos momentos de vida interroga sua alma exalante, e que não satisfeito de instruir-se até a morte, quer que a morte mesma lhe ensine alguma coisa? Pessoa alguma jamais filosofou por tão longo tempo. Não abandonemos depressa demais este grande homem, do qual não se pode falar a não ser com veneração; sim, nós transmitiremos teu nome até a posteridade mais afastada, ilustre vítima, cuja morte ocupa um tão grande lugar entre os crimes de Calígula!
Sêneca, in Da tranquilidade da alma

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