quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O novo causídico

Eis que temos um novo causídico, o Dr. Bucéfalo. Pouco há em sua aparência que nos leve a recordar os tempos em que ele ainda era o cavalo-de-batalha de Alexandre da Macedônia. No entanto, qualquer pessoa bem informada estaria a par de muitas coisas a respeito dele. Ainda recentemente, por exemplo, vi um inexpressivo meirinho – com os olhos espertos que os joão-ninguém costumam ter – acompanhar com espanto os movimentos de nosso causídico quando ele subiu um a um os degraus do Tribunal de Justiça, erguendo bem alto as coxas e fazendo ressoar no mármore cada passo que dava.
De um modo geral, a Corte aprova a investidura do Dr. Bucéfalo. Com surpreendente perspicácia, dizem-se a si próprios os seus membros que o Dr. Bucéfalo está numa posição bastante difícil diante do ordenamento atual da sociedade, mas merece todo apreço precisamente por isso, bem como pela sua importância histórica. Nos dias que correm – ninguém poderá negá-lo – já não temos mais conosco uma personalidade como Alexandre, o Grande. No entanto, não são poucos os que sabem matar; da mesma forma não há falta de eficiência sempre que se quer atingir com a lança um amigo no outro lado da mesa de jogo. Muitos acham que a Macedônia é demasiado pequena, e amaldiçoam Felipe – o pai -, mas são totalmente incapazes de liderar o avanço sobre a Índia. Ao tempo dele, no entanto, as portas da Índia já eram inacessíveis, mas, pelo menos, a espada real sempre apontava a direção correta. Hoje, como se sabe, essas portas foram renovadas para outro lugar, para um sítio muito mais longe, muito mais alto. Já não temos quem nos indique a rota; muitos brandem suas espadas, mas as utilizam apenas para floreios inúteis e, consequentemente, os olhares que os acompanham tornam-se perdidos e confusos.
Talvez seja de fato melhor, por isso mesmo, que todos mergulhemos nos livros jurídicos, tal como fez Bucéfalo. Livre de todas as peias, suas coxas também libertadas das coxas de seu ginete, ele se volta e lê – à luz suave do lampião, e distante dos fragores da batalha de Issus – as páginas de nossos mais vetustos códigos.
Franz Kafka, in Contos, fábulas e aforismos

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