“A
escuridão, as trevas desesperadas, é esse o círculo terrível da vida do
dia-a-dia. Por que é que uma pessoa se levanta de manhã, come, bebe e se deita
outra vez? A criança, o selvagem, o jovem saudável, o animal não padecem sob a
rotina deste círculo de coisas e atividades indiferentes. Aquele a quem os
pensamentos não atormentam, alegra-se com o levantar pela manhã e com o comer e
o beber, acha que é o suficiente e não quer outra coisa.
Mas quem viu esta naturalidade perder-se,
procura no decurso do dia, ansioso e desperto, os momentos da verdadeira vida
cujas cintilações o tornam feliz e que apagam a sensação de que o tempo reúne
em si todos os pensamentos relativos ao sentido e ao objetivo de tudo. Podem
chamar a esses momentos, momentos criadores, porque parece que trazem a
sensação de união com o criador, porque se sente tudo como desejado, mesmo que
seja obra do acaso. É aquilo a que os místicos chamam união com Deus. Talvez
seja a luz muito clara desses momentos que faz parecer tudo tão escuro, talvez
a libertadora e maravilhosa leveza desses momentos faça sentir o resto da vida
tão pesada, pegajosa e opressiva. Não sei, não aprofundei muito o pensamento e
a tirada filosófica. Mas sei que se há bem-aventurança e um paraíso tem de ser
uma duração incólume de tais momentos, e se se pode obter esta felicidade pela
dor e pela sublimação na dor, não há nenhuma dor que justifique a fuga.”
Hermann
Hesse, in Gertrud (fala da personagem Kuhn)
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