“Pode-se
dizer que, muito plausivelmente, há uma ignorância abecedária que precede o
saber e uma outra, doutoral, que se lhe segue, ignorância esta que o saber
produz e engendra da mesma maneira que desfaz e destrói aqueloutra. Dos
espíritos simples, menos curiosos e menos instruídos, fazem-se bons cristãos,
que, por reverência e obediência, com simplicidade, creem e mantêm-se submissos
às leis. É nos espíritos de vigor e capacidade médios que se engendram as
opiniões errôneas, pois eles seguem a aparência das suas primeiras impressões e
têm pretextos para interpretar como simpleza e estultícia o nosso apego aos
antigos usos, considerando que nós aí não chegamos por via do estudo dessas
matérias.
Os
grandes espíritos, mais avisados e clarividentes, constituem um outro gênero de
bons crentes: por meio de uma aturada e escrupulosa investigação, penetram nas
Escrituras até atingir uma luz mais profunda e abstrusa, e entendem o
misterioso e divino segredo da nossa política eclesiástica. Vemos, porém,
alguns, com maravilhoso proveito e com consolidação da sua fé, chegarem,
através do segundo, a este último nível, como o extremo limite da inteligência
cristã, e rejubilar na sua vitória com refrigério, ações de graças, reformas
dos costumes e grande modéstia. Não entendo nesta categoria situar aqueloutros
que, para se purgarem da suspeita dos seus passados erros e para ganharem a
nossa confiança, tornam-se extremistas, insensatos e injustos defensores da
nossa causa, a qual maculam com infindos e repreensíveis atos de violência.
Os
camponeses simples são gente honesta e gente honesta são os filósofos, ou seja,
aqueles que, tanto quanto o permitem os nossos tempos, possuem naturezas fortes
e ilustres, enriquecidas de um grande cabedal de conhecimentos úteis.
Os
‘mestiços’, que desdenharam o primeiro estado - o da ignorância das letras - e
não conseguiram atingir o outro, estando o seu cu entre duas selas (e no seu
número eu, com tantos outros, me incluo), são perigosos, ineptos e importunos:
são eles que trazem transtorno ao mundo. Por isso, no que me diz respeito,
recuo tanto quanto posso para esse primeiro estado natural, do qual em vão
tentei me afastar.
A
poesia popular, puramente espontânea, tem encantos e graças pelas quais se compara
à beleza superior da poesia artisticamente perfeita, como se vê nos vilancicos
gascões e nas canções que nos foram trazidas de nações sem conhecimento de
nenhuma ciência e nem mesmo da escrita. A poesia mediana, que se situa entre
essas duas, é desprezível e indigna de ser honrada e apreciada.
(...) se estes ensaios fossem dignos de
serem refletidos, poderia ocorrer, em minha opinião, que eles não agradassem
aos espíritos comuns e vulgares, nem tampouco aos singulares e excelentes -
aqueles não os entenderiam suficientemente, estes, entendê-los-iam bem de mais
- e só poderiam sobreviver na região intermédia."
Michel
de Montaigne, in Ensaios - Das Vãs Sutilezas
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