Manoel
foi pro céu. O que o surpreendeu muito. Ateu, descrente total, a última
coisa que esperava era descobrir que há vida depois da morte. Mas morreu e
quando abriu os olhos se viu numa sala de espera cheia de gente, com uma senha
na mão, esperando para ser chamado para uma entrevista. Não havia um
grande portão dourado, como vira em mais de uma representação da entrada do
céu, e aparentemente
São Pedro não era mais o porteiro. Fora substituído por recepcionistas com
computadores que faziam a triagem dos recém-chegados. Mas o resto era igual ao
que as pessoas imaginavam: nuvens, todo mundo de camisola branca, música de
harpa...
O
número da sua senha era enorme e Manoel deduziu que mantinham uma numeração corrida, desde o primeiro morto. Mas só chamavam pelos três últimos
algarismos. Enquanto não chamavam seu número, Manoel puxou conversa com o homem
sentado ao seu lado. Que felizmente também era um morto brasileiro. Se
apresentou:
―
Manoel. Enfarte.
―
Bira. Tiro.
―
Você esperava isto aqui?
E
Manoel fez um gesto que englobava toda a vida eterna.
―
Pra dizer a verdade ― disse Bira ― pensei que eu fosse direto para o Inferno.
―
Acho que elas é que decidem pra onde a gente vai ― disse Manoel, indicando as recepcionistas
com a cabeça.
E,
com efeito, quando voltou da sua entrevista com a recepcionista e cruzou com Manoel,
que fora chamado, Bira anunciou:
―
Me deram uma chance. Purgatório. Duzentos anos.
―
Parabéns!
A
recepcionista era simpática. Digitou o nome de Manoel no computador e quando a
sua ficha apareceu, exclamou.
―
Ah, Brasil! Português?
―
Português.
E
o português dela era perfeito. Fez várias perguntas para confirmar os dados sobre
Manoel que tinha no computador. Sempre sorrindo. Mas o sorriso desapareceu de
repente. Foi substituído por uma expressão de desapontamento.
―
Ai, ai, ai... ― disse a recepcionista.
―
O que foi?― Aqui onde diz "Religião". Está: "Nenhuma."
―
Pois é...
―
O senhor não tem nenhuma religião? Pode ser qualquer uma. Nós
encaminhamos para o céu correspondente. Ou, se o senhor preferir
reencarnação...
―
Não, não...
―
Então, sinto muito. Sua ficha é ótima, mas... Manoel a interrompeu:
―
Não tem céu só pra ateu, não?
Não
existia um céu só para ateus. Nem para agnósticos. Também não eram permitidas
conversões "post-mortem". E deixá-lo entrar no céu, numa eternidade
em que nunca acreditara, o sr. Manoel teria que concordar, não seria justo para
com os que sempre acreditaram. Infelizmente, ela tinha que...
―
Espere! ― disse Manoel, dando um tapa na testa. ― Me lembrei agora. Eu sou Univitalista.
―
O quê?
―
Univitalista. É uma religião nova. Talvez por isso não esteja no computador.
―
Em que vocês acreditam?
―
Numa porção de coisas que eu não me lembro agora, mas a vida eterna é uma delas.
Isso eu garanto. Pelo menos foi o que me disseram quando eu me inscrevi. A recepcionista
não parecia muito convencida mas pegou um livreto que mantinha ao lado do computador
e foi direto na letra U. Não encontrou nenhuma religião com aquele nome.
―
Ela é novíssima ― explicou Manoel. ― Ainda estava em teste.
A
recepcionista sacudiu a cabeça mas disse que iria consultar o seu
chefe.
Manoel
deveria voltar ao seu lugar e esperar a decisão do chefe.
E
Manoel voltou para o seu lugar, e desta vez o homem sentado ao seu lado é que puxou
conversa. Abriu os braços e disse:
―
Você acredita nisto?
―
Eu... ― começou a dizer Manoel, mas o outro não o deixou falar.
―
É tudo encenação. É tudo truque. Eles tentam nos pegar até o último minuto.
―
Por favor. Eu...
―
Olha aí. O homem tinha se levantado e estava chutando as nuvens que cobriam o
chão da sala de espera.
―
Isso é gelo seco! Você acha mesmo que existe vida depois da morte? Você acha mesmo
que nós estamos aqui? Estão tentando nos engambelar. É tudo propaganda
religiosa. É tudo...
Mas o Manoel saltou sobre o homem, cobriu
sua cabeça com a camisola, atirou-o no chão e sentou-se em cima dele. Para ele ficar
quieto e não estragar tudo. Afinal, mesmo que fosse só propaganda, era a vida
eterna.
Luís Fernando Veríssimo
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