Passar cinquenta anos sem poder falar sua língua
com alguém é um exílio agudo dentro do silêncio.
Pois há cinquenta anos, Jensen, um dinamarquês,
vivia ali nos pampas argentinos. Ali chegara bem jovem, e desde então nunca
mais teve com quem falar dinamarquês.
Claro que, no princípio, lhe mandavam revistas e
jornais. Mas ninguém manda com assiduidade revistas e jornais para alguém
durante cinquenta anos. Por causa disto, ali estava Jensen há inúmeros anos
lendo e relendo o som silencioso e antigo de sua pátria. E como as folhas não
falavam, punha-se a ler em voz alta, fingindo ouvir na própria voz a voz do
outro, como se um bebê pudesse em solidão cantar para inventar a voz materna.
Cinquenta anos olhando as planuras dos pampas,
acostumado já às carnes generosas dos churrascos conversados em espanhol,
longe, muito longe dos smorgasboard natal.
Um dia, um viajante de carro parou naquele
lugarejo. Seu carro precisava de outros reparos além da gasolina.
Conversa-vai-conversa-vem, no posto ficam sabendo que seu nome também era
Jensen. Não só Jensen, mas um dinamarquês. E alguém lhe diz: aqui também temos
um dinamarquês que se chama Jensen e aquele é o seu filho. O filho se aproxima
e logo se interessa para levar o novo Jensen dinamarquês ao velho Jensen
dinamarquês - pois não é todos os dias que dois dinamarqueses chamados Jensen
se encontram nos pampas argentinos.
No caminho, o filho ia indagando sobre a Dinamarca,
que seu pai dizia ser a terra prometida, onde as vacas davam cem litros de
leite por dia. Na casa, há cinquenta anos sem falar dinamarquês, estava o velho
Jensen, ainda cercado de fotos, alguns objetos e uma abstrata lembrança de sua
língua. Quando Jensen entrou na casa de Jensen e disse "bom dia" em
dinamarquês, o rosto do outro Jensen saiu da neblina e ondulou alegrias.
"É um compatriota!" E a uma palavra seguiram outras, todas em
dinamarquês, e as frases corriam em dinamarquês, e o riso dinamarquês e a
camaradagem dinamarquesa, tudo era um ritual desenterrando ao som da língua a
sonoridade mítica da alma viking.
Jensen mandou preparar um jantar para Jensen.
Vestiu-se da melhor roupa e assim os seus criados. Escolheu a melhor carne. E o
jantar seguia em risos e alegrias iluminando cinquenta anos para trás. Jensen
ouvia de Jensen sobre muitos conhecidos que morreram sem sua autorização,
cidades que se modificaram sem seu consentimento, governos que vieram sem o seu
beneplácito. Em poucas horas, povoou sua mente de nomes de artistas,
rostos de vizinhos, parques e canções. Tudo ia se descongelando no tempo ao som
daquela língua familiar.
Mas havia um problema exatamente neste tópico das
canções. Por isto, terminada a festa, depois dos vinhos e piadas, quando vem à
alma a exilada vontade de cantar, Jensen chama Jensen num canto, como se fosse
revelar algo grave e inadiável:
- Há cerca de cinquenta anos que estou tentando
cantar uma canção e não consigo. Falta-me o segundo verso.
Por favor (disse como se pedisse seu mais agudo socorro, como se implorasse:
retira-me da borda do abismo), por favor, como era mesmo o segundo verso desta canção?
Sem o segundo verso nenhuma canção ou
vida se completa. Sem o segundo verso a vida de um homem, dentro e
fora dos pampas, é como uma escada onde falta um degrau, e o homem para. É um
piano onde falta uma tecla. É uma boca de incompleta dentição.
Se falta o segundo verso, é como se na
linha de montagem faltasse uma peça e não houvesse produção. De repente, é como
se faltasse ao engenheiro a pedra fundamental e se inviabilizasse toda a
construção. Isto sabe muito bem quem andou cinquenta anos na ausência desse verso para
cantar a canção.
Jensen olhou Jensen e disse pausadamente o segundo verso faltante.
E ao ouvi-lo, Jensen - o exilado - cantou de volta o poema inteiro preenchendo
sonoramente cinquenta anos de solidão. Ao terminar, assentou-se num canto e
batia os punhos sobre o joelho dizendo: "Que alegria! Que alegria!"
Era agora um homem inteiro.
Tinha, enfim, nos lábios toda a canção.
Affonson Romano de Sant’Anna
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