domingo, 15 de abril de 2012

Dizer e suas consequências

“Muitas coisas se dizem, que não deviam ser ditas; muitas coisas se calam, que não mereciam calar-se. As palavras são as mesmas, em um e outro caso; só a conveniência delas, na circunstância, é que varia. E na variação, fica o dito por não dito. A menos que o convicto (ou o teimoso) diga: ‘Digo e repito’.
Também cabe referir aquelas coisas manifestadas com ressalvas: ‘Diga-se de passagem’. Em geral, são as que não passam, as mais relevantes no discurso, e a matéria que parecia principal descolore em função do que parecia acessório.
Dizer, bendizer, maldizer, confundem-se na massa de sons. Tudo escapando da mesma boca, mas vozes diferentes atropelam-se nesse anunciar-se de juízos, interesses, paixões e estados de espírito que se desmentem uns aos outros. Contradizer-se é ainda uma solução para o conflito que nossos impulsos sucessivos travam por meio e à custa de palavras.
É tão incoerente essa trama verbal a desenvolver-se no tempo, que se procura dar-lhe nexo, apelando para fórmulas: ‘Como eu dizendo...’ ‘O que é mesmo que eu estava dizendo?’ O dizer de um precisa ser acionado pelo dizer do outro, e do acoplamento (linguagem espacial em curso) dos dizeres surge novo dizer, que é o anterior e é outro. De modo que ninguém diz propriamente o que diz, mas só o que lhe ocorre (se ocorre) dizer, ou lhe é soprado na ocasião. (...)
Entre o dizível e o indizível balança a criação do poeta, flutua o êxtase dos namorados. Dizer o que jamais soube ser dito, aspiração de manipulador de vocábulos, que talvez nem saiba dizer o sabido. Haverá algo a dizer, absolutamente inefável, que nem os anjos conseguissem exprimir nem os homens entender?”
Carlos Drummond de Andrade, in Os dias lindos – Crônicas

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