“A cidade
era atrasada, iluminada por um motorzinho que funcionava num semestre e se
quebrava no outro (…)” (Demétrio Vieira Diniz, in “Sob o Céu de Natal”, Sarau das
Letras, 2012).
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“O lugar onde vivi meus primeiros dez anos, e
que me marcou com desolação e aridez, era um deserto” (idem).
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“– Não adianta, você começa num canto, mas
termina sempre em Mombaça.” (idem, ibidem).
Tenho em mãos o mais novo livro de Demétrio
Vieira Diniz: o conjunto de contos intitulado “Sob o Céu de Natal”. Trata-se de
um empreendimento editorial bem cuidado, bonito graficamente, capa dura, da
editora “Sarau das Letras” capitaneada pelos competentes Clauder Arcanjo e
David Leite, e que contém material literário numa linguagem não menos bem
elaborada por Demétrio Diniz, reconhecido poeta potiguar, que escreve, dessa
feita, como um ourives, como um certo tipo de relojoeiro, montando cuidadosa e
minuciosamente (às vezes com certa timidez, pudor racional, recato extremo que
atrasam a emoção do texto) as peças de seu delicado artefato.
Surpreendi-me, de pronto, ao buscar espelhado
no conteúdo a expressão gravada no título. Talvez, tenha sido mais uma das
licenças poéticas do autor, que ali teria retomado as origens de seu gênero
literário inaugural. Na verdade, o texto do livro me parece propor antes um
resgate da próprias origens territoriais e memorialísticas.
Deparei-me – diferentemente do que imaginava –
com uma espécie de Natal rural, além de arcaica e quase irreconhecível, quase
inocente, frente à cidade meio cosmopolita e ainda meio provinciana, mas
selvagem num certo sentido, que temos hoje situada em meio ao caos imobiliário,
ao caos do tráfego, ao caos do tráfico…
Expressões como “Coronel”, “cria da casa”,
“caritó”, “terno de linho branco”, “faca de esfolar os bodes”, ” raiz de mato”,
“rês no pasto”, “capim alto”, “mastruço misturado ao leite do curral”,
“casa-grande” – dentre muitas outras e seus temas e contos correlatos – falam,
possivelmente, de uma outra cidade que não se assemelha, no mais das vezes, à
Natal de hoje, ou mesmo àquela de trinta ou quarenta anos atrás.
Sob o calor de Natal? Sob o caos de Natal? Onde
se passam as histórias/estórias do livro de Demétrio? Sob o céu ou sob o véu?
De qual cidade? De todas as cidades do mundo… poderia até ser essa uma resposta
plausível, esforçadamente convincente. A outra resposta para a eleição do
título poderia, simplesmente, ser a escolha pelo homônimo conto que está às
págs. 109/114 (“Aos cem anos Maria Eugênia…). Por sinal, um dos mais
interessantes do livro.
Demétrio fotografou uma Natal (ou um mundo)
inocente? Ou outro lugar? Uma Natal antiga e adormecida? Talvez, um lugar da
memória, um lugar do inconsciente demetriano, de escadas velhas e rangentes
(deliciosas, melancólicas, telúricas, assombrosas) dos escaninhos da alma
e da mente do poeta e de seus (nossos) antepassados.
Mas, vale firmar que Demétrio possui potenciais
e recursos que demonstram arte de valor em sua prosa e força narrativa. Como
nesse “sprint”, nesse arranque, em que exibe a perturbação profunda e o
enlouquecimento de um suspeito e tirânico juiz de interior (v. pág. 18):
“”O juiz passou a entrar e sair rápido do
fórum, e não despachava mais nos autos, só os folheando para frente e para
trás. Andava inquieto e falando sozinho uma língua cheia de erres como o turco,
o som parecido com latido de cão, em nada recordando o aramaico de Jesus.
Gastou uma manhã carimbando folhas em branco. Já havia desperdiçado uma resma e
pedido a segunda, quando o escrivão o tirou daquele transe, lembrando a hora do
almoço.
Um dia se deixou seduzir pela magia do circo e
fugiu com a trupe. Muitos anos depois, uma romeira que voltava do Cariri,
revelou tê-lo visto no Juazeiro. Envelhecido, a barba comprida e branca, vendia
óleo de sucuri para asma e reumatismo. O réptil, capaz de moer um boi,
enroscado em seu pescoço.”
De qualquer sorte, para que se prove que a
cidade do livro são todas as cidades, vale a pena procurar (e encontrar) a
peculiar poesia na neófita prosa de Demétrio. E acompanhar essa nova tendência
migratória/pendular (poesia-prosa-poesia) das letras (natalenses?).
Lívio
Oliveira, in www.substantivoplural.com.br
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