“A
maior parte de nossos ofícios são farsas. É preciso representar devidamente
nosso papel, mas como papel de um personagem emprestado. Da máscara e da
aparência não é preciso fazer uma essência real, nem do estranho o próprio. Não
sabemos distinguir a pele da camisa. É bastante enfarinhar o rosto, sem
enfarinhar o peito. Vejo os que se transformam e se transubstanciam em tantas
novas figuras e novos seres quantos cargos que assumem e que se enfarpelam até
o fígado e os intestinos e arrastam seu oficio até seu guarda-roupa. Não posso
ensiná-los a distinguir as barretadas que dizem respeito a eles e eles das que
visam sua comissão ou séquito, ou sua mula. Inflam e engrandecem sua alma e seu
discurso magistral à altura de sua cátedra magistral. O Prefeito e Montaigne
sempre foram dois, com uma separação bem clara. Para ser advogado ou
financista, não é de se desconhecer a patifaria que há em tais ofícios. Um
homem honesto não é contador do vício ou insensatez de sua profissão, e não deve,
contudo, recusar seu exercício; é o uso de seu país e há vantagem. É preciso
viver do mundo e prevalecer-se dele, tal como o encontramos. Mas o juízo de um
Imperador deve estar acima de seu império, e vê-lo considerá-lo como acidente
estrangeiro; e deve saber gozar de si à parte e comunicar-se como Jacques e
Pierre, ao menos a si mesmo”.
Montaigne, in Ensaios
(Livro III)
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