Redemoinho - xilogravura de Arlindo Daibert |
A intenção deste texto é discorrer sobre alguns aspectos da obra Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa. O referido romance desperta em seus leitores sensações ambíguas: grandiosidade literária, excesso de rebuscamento, uso de linguagem erudita, utilização da linguagem do povo, narrativa fluente, representação fiel da realidade, predomínio da imaginação. O leitor, inicialmente, sente-se atordoado com as possibilidades propostas pela obra. Porém, é dessa sensação de caos que surgem as qualidades do escrito de Guimarães Rosa.
O mundo de Grande sertão: veredas é, nas palavras do crítico Davi Arriguci Jr., misturado, ou seja, marcado por inversões de papéis e sentidos humanos e sociais. Assim, existe uma complexidade psicológica e sociológica que não permite uma visão estanque do ser humano e da realidade, tudo está em movimento, em constante mutação, o que é hoje não é amanhã. As ideias se embaralham, decorrendo daí complicações no enredo e uma sensação ao narrador e ao leitor de desconcerto do mundo.
O narrador Riobaldo tenta primeiramente compreender a realidade de forma clara, delimitando opostos. No entanto, o mundo não é estático, é movente, não há como compreendê-lo nitidamente. A assassina torna-se santa, o amigo transforma-se em inimigo, o diabo protege a alma, o homem muda para mulher, a vida não é vida. Existem dúvidas desconfortantes que geram no velho jagunço a necessidade de narrar, de externar o que viveu no sertão, até como uma maneira de buscar o entendimento sobre os mecanismos da vida.
A exemplo do que acontece com o mundo exterior, ambiente no qual transcorre a ação narrativa, a linguagem do narrador também é movente e complexa, expressões da cultura popular transfiguram-se em escritos eruditos e assimilam nova carga expressiva, palavras do vocabulário regional tornam-se parte de um léxico universal, sentido denotativo torna-se conotativo. De modo que ocorre igualmente uma espécie de amálgama na linguagem e no gênero textual, que é prosa (pela forma), mas também é poesia (pela linguagem empregada).
A perspectiva da mistura está presente, portanto, em todo o romance, tanto na forma quanto no conteúdo. E inclusive, de maneira mais visível, no modo de caracterização das personagens, pois nestes a “bondade” e a “ruindade” se alternam, estão entranhadas e fundidas, plenamente associadas. O próprio Riobaldo realiza permutas entre fases boas e ruins ao longo da ação narrativa. Por isso, partindo de sua experiência própria e da observação do que acontecia a sua volta, ele foi capaz de chegar à seguinte constatação: “Mire e veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou”.
Na elaboração formal do romance, a “combinação entre elementos distintos e aparentemente opositivos” ocorre tanto na linguagem, como mencionado anteriormente, quanto na “arquitetura da narrativa”. Grande sertão: veredas consegue mesclar o arcaico ao moderno, por meio do artifício de transformar o romance (gênero da modernidade) num relato de proporções épicas (gênero da antiguidade). A retomada de formas simples das narrativas orais, como os provérbios, frases aforismáticas, causos e narrativas exemplares, intensifica o sentimento de mistura de formas narrativas. Pois, alia-se a complexidade do romance à aparente simplicidade da tradição oral.
Mas, diante de tudo que foi exposto, como criar uma situação enunciativa que possibilitasse a relação entre tantos elementos formais distintos? A solução de Guimarães Rosa foi a de construir uma conversa entre um narrador tradicional da oralidade, o ex-jagunço Riobaldo, e um homem culto que o visitava. Desse modo, elaborou-se uma espécie de licença poética para as experimentações linguísticas ocorridas na fala de Riobaldo. Essa situação aponta ainda para a relação campo e cidade, popular e erudito. Porém, existe um detalhe: o diálogo é, na verdade, monólogo, porque ao longo de todo o romance o suposto interlocutor do narrador não se pronuncia, apenas escuta Riobaldo. E assim surge mais um elemento que acentua a noção de mistura formal no Grande sertão: veredas.
Levando em conta os pontos expostos, acredita-se que, por sua natureza complexa e movente aliada à “erudição” da cultura popular, o Grande sertão: veredas consegue se renovar com tempo e cada vez mais se transformar em uma obra completa e canônica. Por isso, o equilibrado Antonio Candido não se conteve e afirmou categoricamente em ensaio publicado um ano após o lançamento do romance: “Na extraordinária obra-prima Grande sertão: veredas há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar”. Precisa dizer mais?
Marcel Lúcio, Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do IFRN – Campus Natal Cidade Alta, in www.substantivoplural.com.br
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