Aqui
está o que contava, há muitos anos, um velho cônego da Capela
Imperial:
— Não
desejo ao meu maior inimigo o que me aconteceu no mês de abril de
1839. Tinha-me dado na cabeça escrever uma obra política, a
história do reinado de D. Pedro I. Até então esperdiçara algum
talento em décimas e sonetos, muitos artigos de periódicos, e
alguns sermões, que cedia a outros, depois que reconheci que não
tinha os dons indispensáveis ao púlpito. No mês de agosto de 1838
li as Memórias que outro padre, Luís Gonçalves dos Santos, o padre
Perereca chamado, escreveu do tempo do rei, e foi esse livro que me
meteu em brios. Achei-o seguramente medíocre, e quis mostrar que um
membro da igreja brasileira podia fazer coisa melhor.
Comecei
logo a recolher os materiais necessários, jornais, debates,
documentos públicos, e a tomar notas de toda a parte e de tudo. No
meado de fevereiro, disseram-me que, em certa casa da cidade,
acharia, além de livros, que poderia consultar, muitos papéis
manuscritos, alguns reservados, naturalmente importantes, porque o
dono da casa, falecido desde muitos anos, havia sido ministro de
Estado. Compreende-se que esta notícia me aguçasse a curiosidade. A
casa, que tinha capela para uso da família e dos moradores próximos,
tinha também um padre contratado para dizer missa aos domingos, e
confessar pela quaresma: era o rev. Mascarenhas. Fui ter com ele para
que me alcançasse da viúva a permissão de ver os papéis.
— Não
sei se lhe consentirá isso, disse-me ele; mas vou ver.
— Por
que não há de consentir? É claro que não me utilizarei senão do
que for possível, e com autorização dela.
— Pois
sim, mas é que livros e papéis estão lá em grande respeito. Não
se mexe em nada que foi do marido, por uma espécie de veneração,
que a boa senhora conserva e sempre conservará. Mas enfim vou ver, e
far-se-á o que for possível.
Mascarenhas
trouxe-me a resposta dez dias depois. A viúva começou recusando;
mas o padre instou, expôs o que era, disse-lhe que nada perdia do
devido respeito à memória do marido consentindo que alguém
folheasse uma parte da biblioteca e do arquivo, uma parte apenas; e
afinal conseguiu, depois de longa resistência, que me apresentasse
lá. Não me demorei muito em usar do favor; e no domingo próximo
acompanhei o Padre Mascarenhas.
A
casa, cujo lugar e direção não é preciso dizer, tinha entre o
povo o nome de Casa Velha, e era-o realmente: datava dos fins do
outro século. Era uma edificação sólida e vasta, gosto severo,
nua de adornos. Eu, desde criança, conhecia-lhe a parte exterior, a
grande varanda da frente, os dois portões enormes, um especial às
pessoas da família e às visitas, e outro destinado ao serviço, às
cargas que iam e vinham, às seges, ao gado que saía a pastar. Além
dessas duas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um
caminho que dava acesso às pessoas da vizinhança, que ali iam ouvir
missa aos domingos, ou rezar a ladainha aos sábados.
Foi
por esse caminho que chegamos à casa, às sete horas e poucos
minutos. Entramos na capela, após um raio de sol, que brincava no
azulejo da parede interior onde estavam representados vários passos
da Escritura. A capela era pequena, mas muito bem tratada. Ao
rés-do-chão, à esquerda, perto do altar, uma tribuna servia
privativamente à dona da casa, e às senhoras da família ou
hóspedas, que entravam pelo interior; os homens, os fâmulos e
vizinhos ocupavam o corpo da igreja. Foi o que me disse o padre
Mascarenhas explicando tudo. Chamou-me a atenção para os castiçais
de prata, para as toalhas finas e alvíssimas, para o chão em que
não havia uma palha.
— Todos
os paramentos são assim, concluiu ele. E este confessionário?
Pequeno, mas um primor.
Não
havia coro nem órgão. Já disse que a capela era pequena; em certos
dias, a concorrência à missa era tal que até na soleira da porta
vinham ajoelhar-se fiéis. Mascarenhas fez-me notar à esquerda da
capela o lugar em que estava sepultado o ex-ministro. Tinha-o
conhecido, pouco antes de 1831, e contou-me algumas particularidades
interessantes; falou-me também da piedade e saudade da viúva, da
veneração em que tinha a memória dele, das relíquias que
guardava, das alusões frequentes na conversação.
— Lá
verá na biblioteca o retrato dele, disse-me. Começaram a entrar na
igreja algumas pessoas da vizinhança, em geral pobres, de todas as
idades e cores. Dos homens alguns, depois de persignados e rezados,
saíam, outra vez, para esperar fora, conversando, a hora da missa.
Vinham também escravos da casa. Um destes era o próprio sacristão;
tinha a seu cargo, não só a guarda e asseio da capela, mas também
ajudava a missa, e, salvo a prosódia latina, com muita perfeição.
Fomos achá-lo diante de uma grande cômoda de jacarandá antigo, com
argolas de prata nos gavetões, concluindo os arranjos preparatórios.
Na sacristia, entrou logo depois um moço de vinte anos mais ou
menos, simpático, fisionomia meiga e franca, a quem o padre
Mascarenhas me apresentou; era o filho da dona da casa, Félix.
— Já
sei, disse ele sorrindo, mamãe me falou de V. Revma. Vem ver o
arquivo de papai?
Confiei-lhe
rapidamente a minha ideia, e ele ouviu-me com interesse. Enquanto
falávamos vieram outros homens de dentro, um sobrinho do dono da
casa, Eduardo, também de vinte anos, um velho parente, coronel
Raimundo, e uns dois ou três hóspedes. Félix apresentou-me a
todos, e, durante alguns minutos, fui naturalmente objeto de grande
curiosidade. Mascarenhas, paramentado e de pé, com o cotovelo na
borda da cômoda, ia dizendo alguma coisa, pouca; ouvia mais do que
falava, com um sorriso antecipado nos lábios, voltando a cabeça a
miúdo para um ou outro. Félix tratava-o com benevolência e até
deferência; pareceu-me inteligente, lhano e modesto. Os outros
apenas faziam coro. O coronel não fazia nada mais que confessar que
tinha fome; acordara cedo e não tomara café.
— Parece
que são horas, disse Félix; e, depois de ir à porta da capela: —
Mamãe já está na tribuna. Vamos?
Fomos.
Na tribuna estavam quatro senhoras, duas idosas e duas moças.
Cumprimentei-as de longe, e, sem mais encará-las, percebi que
tratavam de mim, falando umas às outras. Felizmente o padre entrou
daí a três minutos, ajoelhamo-nos todos, e seguiu-se a missa que,
por fortuna do coronel, foi engrolada. Quando acabou, Félix foi
beijar a mão à mãe e à outra senhora idosa, tia dele; levou-me e
apresentou-me ali mesmo a ambas. Não falamos do meu projeto;
tão-somente a dona da casa disse-me delicadamente:
— Está
entendido que V. Revma. faz-nos a honra de almoçar conosco?
Inclinei-me
afirmativamente. Não me lembrou sequer acrescentar que a honra era
toda minha.
A
verdade é que me sentia tolhido. Casa, hábitos, pessoas davam-me
ares de outro tempo, exalavam um cheiro de vida clássica. Não era
raro o uso de capela particular; o que me pareceu único foi a
disposição daquela, a tribuna de família, a sepultura do chefe,
ali mesmo, ao pé dos seus, fazendo lembrar as primitivas sociedades
em que florescia a religião doméstica e o culto privado dos mortos.
Logo que as senhoras saíram da tribuna, por uma porta interior,
voltamos à sacristia, onde o padre Mascarenhas esperava com o
coronel e os outros. Da porta da sacristia, passando por um saguão,
descemos dois degraus para um pátio, vasto, calçado de cantaria,
com uma cisterna no meio. De um lado e outro corria um avarandado,
ficando à esquerda alguns quartos, e à direita a cozinha e a copa.
Pretas e moleques espiavam-me, curiosos, e creio que sem espanto,
porque naturalmente a minha visita era desde alguns dias a
preocupação de todos. Com efeito, a casa era uma espécie de vila
ou fazenda, onde os dias, ao contrário de um rifão peregrino,
pareciam-se uns com os outros; as pessoas eram as mesmas, nada
quebrava a uniformidade das coisas, tudo quieto e patriarcal.
D.
Antônia governava esse pequeno mundo com muita discrição, brandura
e justiça. Nascera dona de casa; no próprio tempo em que a vida
política do marido, e a entrada deste nos conselhos de Pedro I
podiam tirá-la do recesso e da obscuridade, só a custo e raramente
os deixou. Assim é que, em todo o ministério do marido, apenas duas
vezes foi ao paço. Era filha de Minas Gerais, mas foi criada no Rio
de Janeiro, naquela mesma Casa Velha, onde casou, onde perdeu o
marido e onde lhe nasceram os filhos — Félix, e uma menina que
morreu com três anos. A casa fora construída pelo avô, em 1780,
voltando da Europa, de onde trouxe ideias de solar e costumes
fidalgos; e foi ele, e parece que também a filha, mãe de D.
Antônia, quem deu a esta a pontazinha de orgulho, que se lhe podia
notar, e quebrava a unidade da índole desta senhora, essencialmente
chã. Inferi isso de algumas anedotas que ela me contou de ambos, no
tempo do rei. D. Antônia era antes baixa que alta, magra, muito bem
composta, vestida com singeleza e austeridade; devia ter quarenta e
seis a quarenta e oito anos.
Poucos
minutos depois estávamos almoçando. O coronel, que afirmava, rindo,
ter um buraco de palmo no estômago, nem por isso comeu muito, e
durante os primeiros minutos, não disse nada; olhava para mim,
obliquamente, e, se dizia alguma coisa, era baixinho, às duas moças,
filhas dele; mas desforrou-se para o fim, e não conversava mal.
Félix, eu e o padre Mascarenhas falávamos de política, do
ministério e dos sucessos do Sul. Notei desde logo, no filho do
ministro, a qualidade de saber escutar, e de dissentir parecendo
aceitar o conceito alheio, de tal modo que, às vezes, a gente
recebia a opinião devolvida por ele, e supunha ser a mesma que
emitira. Outra coisa que me chamou a atenção foi que a mãe,
percebendo o prazer com que eu falava ao filho, parecia encantada e
orgulhosa. Compreendi que ela herdara as naturais esperanças do pai,
e redobrei de atenção com o filho. Fi-lo sem esforço; mas pode ser
também que entrasse por alguma coisa, naquilo, a necessidade de
captar toda a afeição da casa, por motivo do meu projeto.
Foi
só depois do almoço que falamos do projeto. Passamos à varanda,
que comunicava com a sala de jantar, e dava para um grande terreiro;
era toda ladrilhada, e tinha o teto sustentado por grossas colunas de
cantaria. D. Antônia chamou-me, sentei-me ao pé dela, com o Padre
Mascarenhas.
— Reverendíssimo,
a casa está às suas ordens, disse-me ela. Fiz o que o Sr. Padre
Mascarenhas me pediu, e a muito custo, não porque o não julgue
pessoa capaz, mas porque os livros e papéis de meu marido ninguém
mexe neles.
— Creia
que agradeço muito…
— Pode
agradecer, interrompeu ela sorrindo; não faria isto a outra pessoa.
Precisa ver tudo?
— Não
posso dizer se tudo; depois de um rápido exame, saberei mais ou
menos o que preciso. E V. Ex.ª também há de ser um livro para mim,
e o melhor livro, o mais íntimo…
— Como?
— Espero
que me conte algumas coisas, que hão de ter ficado escondidas. As
histórias fazem-se em parte com as notícias pessoais. V. Exª.,
esposa de ministro…
D.
Antônia deu de ombros.
— Ah!
eu nunca entendi de política; nunca me meti nessas coisas.
— Tudo
pode ser política, minha senhora; uma anedota, um dito, qualquer
coisa de nada, pode valer muito.
Foi
neste ponto que ela me disse o que acima referi; vivia em casa, pouco
saía, e só foi ao paço duas vezes. Confessou até que da primeira
vez teve muito medo, e só o perdeu por se lembrar a tempo de um dito
do avô.
— Saí
de casa tremendo. Era dia de gala, ia trajada à Corte; pelas
portinholas do coche via muita gente olhando, parada. Mas quando me
lembrava que tinha de cumprimentar o imperador e a imperatriz,
confesso que o coração me batia muito. Ao descer do coche, o medo
cresceu, e ainda mais quando subi as escadas do paço. De repente,
lembrou-me um dito de meu avô. Meu avô, quando aqui chegou o rei,
levou-me a ver as festas da cidade, e, como eu, ainda mocinha,
impressionada, lhe dissesse que tinha medo de encarar o rei, se ele
aparecesse na rua, olhou para mim, e disse com um modo muito sério
que ele tinha às vezes: “Menina, uma Quintanilha não treme
nunca!” Foi o que fiz, lembrou-me que uma Quintanilha não tremia,
e, sem tremer, cumprimentei Suas Majestades.
Rimo-nos
todos. Eu, pela minha parte, declarei que aceitava a explicação e
não lhe pediria nada; e depois falei de outras coisas. Parece que
estava de veia, se não é que a conversação da viúva me meteu em
brios. Veio o filho, veio o cunhado, vieram as moças, e posso
afirmar que deixei a melhor impressão em todos; foi o que o Padre
Mascarenhas me confirmou, alguns dias depois, e foi o que notei por
mim mesmo.
Machado de Assis, em Casa Velha
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