domingo, 1 de dezembro de 2024

Capítulo I – Antes e depois da missa


Aqui está o que contava, há muitos anos, um velho cônego da Capela Imperial:
Não desejo ao meu maior inimigo o que me aconteceu no mês de abril de 1839. Tinha-me dado na cabeça escrever uma obra política, a história do reinado de D. Pedro I. Até então esperdiçara algum talento em décimas e sonetos, muitos artigos de periódicos, e alguns sermões, que cedia a outros, depois que reconheci que não tinha os dons indispensáveis ao púlpito. No mês de agosto de 1838 li as Memórias que outro padre, Luís Gonçalves dos Santos, o padre Perereca chamado, escreveu do tempo do rei, e foi esse livro que me meteu em brios. Achei-o seguramente medíocre, e quis mostrar que um membro da igreja brasileira podia fazer coisa melhor.
Comecei logo a recolher os materiais necessários, jornais, debates, documentos públicos, e a tomar notas de toda a parte e de tudo. No meado de fevereiro, disseram-me que, em certa casa da cidade, acharia, além de livros, que poderia consultar, muitos papéis manuscritos, alguns reservados, naturalmente importantes, porque o dono da casa, falecido desde muitos anos, havia sido ministro de Estado. Compreende-se que esta notícia me aguçasse a curiosidade. A casa, que tinha capela para uso da família e dos moradores próximos, tinha também um padre contratado para dizer missa aos domingos, e confessar pela quaresma: era o rev. Mascarenhas. Fui ter com ele para que me alcançasse da viúva a permissão de ver os papéis.
Não sei se lhe consentirá isso, disse-me ele; mas vou ver.
Por que não há de consentir? É claro que não me utilizarei senão do que for possível, e com autorização dela.
Pois sim, mas é que livros e papéis estão lá em grande respeito. Não se mexe em nada que foi do marido, por uma espécie de veneração, que a boa senhora conserva e sempre conservará. Mas enfim vou ver, e far-se-á o que for possível.
Mascarenhas trouxe-me a resposta dez dias depois. A viúva começou recusando; mas o padre instou, expôs o que era, disse-lhe que nada perdia do devido respeito à memória do marido consentindo que alguém folheasse uma parte da biblioteca e do arquivo, uma parte apenas; e afinal conseguiu, depois de longa resistência, que me apresentasse lá. Não me demorei muito em usar do favor; e no domingo próximo acompanhei o Padre Mascarenhas.
A casa, cujo lugar e direção não é preciso dizer, tinha entre o povo o nome de Casa Velha, e era-o realmente: datava dos fins do outro século. Era uma edificação sólida e vasta, gosto severo, nua de adornos. Eu, desde criança, conhecia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os dois portões enormes, um especial às pessoas da família e às visitas, e outro destinado ao serviço, às cargas que iam e vinham, às seges, ao gado que saía a pastar. Além dessas duas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho que dava acesso às pessoas da vizinhança, que ali iam ouvir missa aos domingos, ou rezar a ladainha aos sábados.
Foi por esse caminho que chegamos à casa, às sete horas e poucos minutos. Entramos na capela, após um raio de sol, que brincava no azulejo da parede interior onde estavam representados vários passos da Escritura. A capela era pequena, mas muito bem tratada. Ao rés-do-chão, à esquerda, perto do altar, uma tribuna servia privativamente à dona da casa, e às senhoras da família ou hóspedas, que entravam pelo interior; os homens, os fâmulos e vizinhos ocupavam o corpo da igreja. Foi o que me disse o padre Mascarenhas explicando tudo. Chamou-me a atenção para os castiçais de prata, para as toalhas finas e alvíssimas, para o chão em que não havia uma palha.
Todos os paramentos são assim, concluiu ele. E este confessionário? Pequeno, mas um primor.
Não havia coro nem órgão. Já disse que a capela era pequena; em certos dias, a concorrência à missa era tal que até na soleira da porta vinham ajoelhar-se fiéis. Mascarenhas fez-me notar à esquerda da capela o lugar em que estava sepultado o ex-ministro. Tinha-o conhecido, pouco antes de 1831, e contou-me algumas particularidades interessantes; falou-me também da piedade e saudade da viúva, da veneração em que tinha a memória dele, das relíquias que guardava, das alusões frequentes na conversação.
Lá verá na biblioteca o retrato dele, disse-me. Começaram a entrar na igreja algumas pessoas da vizinhança, em geral pobres, de todas as idades e cores. Dos homens alguns, depois de persignados e rezados, saíam, outra vez, para esperar fora, conversando, a hora da missa. Vinham também escravos da casa. Um destes era o próprio sacristão; tinha a seu cargo, não só a guarda e asseio da capela, mas também ajudava a missa, e, salvo a prosódia latina, com muita perfeição. Fomos achá-lo diante de uma grande cômoda de jacarandá antigo, com argolas de prata nos gavetões, concluindo os arranjos preparatórios. Na sacristia, entrou logo depois um moço de vinte anos mais ou menos, simpático, fisionomia meiga e franca, a quem o padre Mascarenhas me apresentou; era o filho da dona da casa, Félix.
Já sei, disse ele sorrindo, mamãe me falou de V. Revma. Vem ver o arquivo de papai?
Confiei-lhe rapidamente a minha ideia, e ele ouviu-me com interesse. Enquanto falávamos vieram outros homens de dentro, um sobrinho do dono da casa, Eduardo, também de vinte anos, um velho parente, coronel Raimundo, e uns dois ou três hóspedes. Félix apresentou-me a todos, e, durante alguns minutos, fui naturalmente objeto de grande curiosidade. Mascarenhas, paramentado e de pé, com o cotovelo na borda da cômoda, ia dizendo alguma coisa, pouca; ouvia mais do que falava, com um sorriso antecipado nos lábios, voltando a cabeça a miúdo para um ou outro. Félix tratava-o com benevolência e até deferência; pareceu-me inteligente, lhano e modesto. Os outros apenas faziam coro. O coronel não fazia nada mais que confessar que tinha fome; acordara cedo e não tomara café.
Parece que são horas, disse Félix; e, depois de ir à porta da capela: — Mamãe já está na tribuna. Vamos?
Fomos. Na tribuna estavam quatro senhoras, duas idosas e duas moças. Cumprimentei-as de longe, e, sem mais encará-las, percebi que tratavam de mim, falando umas às outras. Felizmente o padre entrou daí a três minutos, ajoelhamo-nos todos, e seguiu-se a missa que, por fortuna do coronel, foi engrolada. Quando acabou, Félix foi beijar a mão à mãe e à outra senhora idosa, tia dele; levou-me e apresentou-me ali mesmo a ambas. Não falamos do meu projeto; tão-somente a dona da casa disse-me delicadamente:
Está entendido que V. Revma. faz-nos a honra de almoçar conosco?
Inclinei-me afirmativamente. Não me lembrou sequer acrescentar que a honra era toda minha.
A verdade é que me sentia tolhido. Casa, hábitos, pessoas davam-me ares de outro tempo, exalavam um cheiro de vida clássica. Não era raro o uso de capela particular; o que me pareceu único foi a disposição daquela, a tribuna de família, a sepultura do chefe, ali mesmo, ao pé dos seus, fazendo lembrar as primitivas sociedades em que florescia a religião doméstica e o culto privado dos mortos. Logo que as senhoras saíram da tribuna, por uma porta interior, voltamos à sacristia, onde o padre Mascarenhas esperava com o coronel e os outros. Da porta da sacristia, passando por um saguão, descemos dois degraus para um pátio, vasto, calçado de cantaria, com uma cisterna no meio. De um lado e outro corria um avarandado, ficando à esquerda alguns quartos, e à direita a cozinha e a copa. Pretas e moleques espiavam-me, curiosos, e creio que sem espanto, porque naturalmente a minha visita era desde alguns dias a preocupação de todos. Com efeito, a casa era uma espécie de vila ou fazenda, onde os dias, ao contrário de um rifão peregrino, pareciam-se uns com os outros; as pessoas eram as mesmas, nada quebrava a uniformidade das coisas, tudo quieto e patriarcal.
D. Antônia governava esse pequeno mundo com muita discrição, brandura e justiça. Nascera dona de casa; no próprio tempo em que a vida política do marido, e a entrada deste nos conselhos de Pedro I podiam tirá-la do recesso e da obscuridade, só a custo e raramente os deixou. Assim é que, em todo o ministério do marido, apenas duas vezes foi ao paço. Era filha de Minas Gerais, mas foi criada no Rio de Janeiro, naquela mesma Casa Velha, onde casou, onde perdeu o marido e onde lhe nasceram os filhos — Félix, e uma menina que morreu com três anos. A casa fora construída pelo avô, em 1780, voltando da Europa, de onde trouxe ideias de solar e costumes fidalgos; e foi ele, e parece que também a filha, mãe de D. Antônia, quem deu a esta a pontazinha de orgulho, que se lhe podia notar, e quebrava a unidade da índole desta senhora, essencialmente chã. Inferi isso de algumas anedotas que ela me contou de ambos, no tempo do rei. D. Antônia era antes baixa que alta, magra, muito bem composta, vestida com singeleza e austeridade; devia ter quarenta e seis a quarenta e oito anos.
Poucos minutos depois estávamos almoçando. O coronel, que afirmava, rindo, ter um buraco de palmo no estômago, nem por isso comeu muito, e durante os primeiros minutos, não disse nada; olhava para mim, obliquamente, e, se dizia alguma coisa, era baixinho, às duas moças, filhas dele; mas desforrou-se para o fim, e não conversava mal. Félix, eu e o padre Mascarenhas falávamos de política, do ministério e dos sucessos do Sul. Notei desde logo, no filho do ministro, a qualidade de saber escutar, e de dissentir parecendo aceitar o conceito alheio, de tal modo que, às vezes, a gente recebia a opinião devolvida por ele, e supunha ser a mesma que emitira. Outra coisa que me chamou a atenção foi que a mãe, percebendo o prazer com que eu falava ao filho, parecia encantada e orgulhosa. Compreendi que ela herdara as naturais esperanças do pai, e redobrei de atenção com o filho. Fi-lo sem esforço; mas pode ser também que entrasse por alguma coisa, naquilo, a necessidade de captar toda a afeição da casa, por motivo do meu projeto.
Foi só depois do almoço que falamos do projeto. Passamos à varanda, que comunicava com a sala de jantar, e dava para um grande terreiro; era toda ladrilhada, e tinha o teto sustentado por grossas colunas de cantaria. D. Antônia chamou-me, sentei-me ao pé dela, com o Padre Mascarenhas.
Reverendíssimo, a casa está às suas ordens, disse-me ela. Fiz o que o Sr. Padre Mascarenhas me pediu, e a muito custo, não porque o não julgue pessoa capaz, mas porque os livros e papéis de meu marido ninguém mexe neles.
Creia que agradeço muito…
Pode agradecer, interrompeu ela sorrindo; não faria isto a outra pessoa. Precisa ver tudo?
Não posso dizer se tudo; depois de um rápido exame, saberei mais ou menos o que preciso. E V. Ex.ª também há de ser um livro para mim, e o melhor livro, o mais íntimo…
Como?
Espero que me conte algumas coisas, que hão de ter ficado escondidas. As histórias fazem-se em parte com as notícias pessoais. V. Exª., esposa de ministro…
D. Antônia deu de ombros.
Ah! eu nunca entendi de política; nunca me meti nessas coisas.
Tudo pode ser política, minha senhora; uma anedota, um dito, qualquer coisa de nada, pode valer muito.
Foi neste ponto que ela me disse o que acima referi; vivia em casa, pouco saía, e só foi ao paço duas vezes. Confessou até que da primeira vez teve muito medo, e só o perdeu por se lembrar a tempo de um dito do avô.
Saí de casa tremendo. Era dia de gala, ia trajada à Corte; pelas portinholas do coche via muita gente olhando, parada. Mas quando me lembrava que tinha de cumprimentar o imperador e a imperatriz, confesso que o coração me batia muito. Ao descer do coche, o medo cresceu, e ainda mais quando subi as escadas do paço. De repente, lembrou-me um dito de meu avô. Meu avô, quando aqui chegou o rei, levou-me a ver as festas da cidade, e, como eu, ainda mocinha, impressionada, lhe dissesse que tinha medo de encarar o rei, se ele aparecesse na rua, olhou para mim, e disse com um modo muito sério que ele tinha às vezes: “Menina, uma Quintanilha não treme nunca!” Foi o que fiz, lembrou-me que uma Quintanilha não tremia, e, sem tremer, cumprimentei Suas Majestades.
Rimo-nos todos. Eu, pela minha parte, declarei que aceitava a explicação e não lhe pediria nada; e depois falei de outras coisas. Parece que estava de veia, se não é que a conversação da viúva me meteu em brios. Veio o filho, veio o cunhado, vieram as moças, e posso afirmar que deixei a melhor impressão em todos; foi o que o Padre Mascarenhas me confirmou, alguns dias depois, e foi o que notei por mim mesmo.

Machado de Assis, em Casa Velha

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