“Levante
um só dedo e estará salvo!”, dizia o reverendo Davis ao Fubina
deitado na cama, já sem consciência de coisa alguma. O momento era
grave. A eternidade estava em jogo. Os circunstantes acompanhavam a
batalha entre Deus e o Diabo. “Levante um só dedo e estará
salvo!”, repetia o reverendo Davis. Mas o dedo do Fubina não se
levantava. Quem diria que de um levantamento de dedo dependia o
futuro eterno da alma do Fubina! Se levantasse o dedo, sua alma iria
para as delícias do Céu. Se não levantasse o dedo, sua alma iria
para os horrores do Inferno.
O
reverendo Davis era um missionário norte-americano, de rudes origens
rurais. Aprendera na sua congregação as verdades espirituais
necessárias à salvação das almas. Sabia que os católicos iriam
para o Inferno por serem idólatras. Ficou sabendo que havia milhões
de pessoas que iriam para o Inferno se alguma coisa não fosse feita
para salvá-las da idolatria do catolicismo. Então, de repente, Deus
o chamou... Foi quando ele lia o livro de Jonas, no Antigo
Testamento. Jonas, um pacato cidadão que cuidava da sua vida, foi
chamado por Deus, que lhe ordenou largar tudo e ir para Nínive, a
grande cidade, para pregar contra os seus pecados. Se a cidade não
se arrependesse, Deus a destruiria! Jonas não gostou da idéia e
fugiu na direção contrária: tomou um navio que ia para Társis. O
resto todo mundo sabe. Deus mandou uma tempestade sobre o mar que
ameaçava afundar o navio. Descobriram que Jonas era o culpado
daquela situação e, sem dó nem piedade, lançaram-no ao mar,
sobrevindo imediatamente a bonança. Mas Deus havia posto um peixe à
espera. De boca aberta, engoliu Jonas sem lhe fazer mal algum. E, no
ventre do peixe, Jonas chegou mesmo a fazer literatura. O reverendo
Davis não queria que coisa parecida acontecesse com ele e tratou de
ir na direção que Deus apontava, o Brasil e seu povo idólatra. Era
o santo guerreiro contra o dragão da maldade. Por caminhos vários
chegou a Dores, onde pregava monótonos sermões num pequeno salão.
Ninguém prestava muita atenção nos sermões, nem era possível,
mas os hinos eram bonitos. Minha mãe, de vez em quando, acompanhava
os hinos ao harmônio. O Fubina era um homem comum, nem santo nem
pecador, pecava somente os pequenos pecados que tornam a vida menos
monótona, como, de vez em quando, jogar na loteria ou beber uma
cerveja sem que ninguém o visse. Não, o Fubina não merecia o
Inferno eterno de forma alguma. Mas faltava-lhe uma coisa: ainda não
havia publicamente confessado que aceitava Cristo como seu salvador.
Por isso ele estava excluído da eucaristia. O reverendo Davis
advertia o Fubina com seu sotaque americano: “O senhor está
procrastinando...” . Como o Fubina não soubesse o que era
“procrastinar”, as palavras do reverendo entravam por um ouvido e
saíam pelo outro. Tudo menos se comprometer. Mas tempo vai, tempo
vem, o Fubina teve um derrame e perdeu a consciência das coisas. O
momento decisivo se aproximava. Os católicos são mais felizes que
os protestantes. Eles têm um jeito de fazer depósitos de méritos
na conta de uma pessoa mesmo depois de sua morte. No Purgatório
estão as almas em liberdade condicional. Missas e rezas são
créditos que se somam à contabilidade espiritual falida daquelas
almas. Quando os débitos se equilibram com os créditos então a
alma sai de sua liberdade condicional e vai para a bem-aventurança
eterna. Mas o Deus protestante não aceita pagamentos a prazo. Com a
morte vem a execução imediata da dívida, e a alma vai eternamente
para o fogo do Inferno. Essa era a agonia do reverendo Davis. A alma
do Fubina estava em perigo. Ele chegou mesmo a amenizar a exigência
de confissão pública da fé. Bastava que o Fubina mexesse um dedo,
uma única vez. O dedo do Fubina não mexeu. O reverendo Davis perdeu
a batalha. O Diabo ganhou. Fora ele, o Diabo, que segurara o dedo do
Fubina para que não levantasse. Pobre Fubina... Se o seu dedo
tivesse se mexido, ele passaria a eternidade no Céu ouvindo coros de
anjos a cantar hinos. Mas o seu dedo não se mexeu. Passará toda a
eternidade no Inferno a ouvir os sádicos demônios a repetir, em
coro, a voz esganiçada da sua mulher a lhe dar ordens... Quem diria
que o destino eterno de uma alma pode depender de uma ereção de
dedo!
Rubem Alves, em O Velho que Acordou Menino
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