A
culinária consta de duas partes. Primeira: fogo, fogões, panelas,
caldeirões, azeite, óleo, água, conchas, colheres, facas,
temperos, legumes, cereais, carnes, peixes, aves. Segunda: sopa,
arroz com feijão, frango com quiabo e pimenta, moquecas, feijoadas,
saladas, peixe na telha, assados, bifes, tomates recheados,
aperitivos, sobremesas, bebidas. A primeira parte não dá prazer.
São ferramentas, matérias-primas, utensílios, em si mesmos sem
gosto. Não há culinária sem eles. Mas eles não fazem a culinária.
São
apenas meios para a produção do objeto de prazer. Utensílios
sofisticados e importados não bastam para que a comida seja boa. É
preciso que haja a ação de um feiticeiro – Babette era uma
feiticeira (veja o filme A festa de Babette), Tita era uma
feiticeira (veja o filme Como água para chocolate) –
cozinheiro. Culinária é feitiçaria. A segunda parte resulta de um
ritual mágico de transformações: o banquete. O objetivo do
banquete é servir felicidade – prazer e alegria – sob a forma de
comida. Quem compreende a culinária é sábio. Na culinária se
encontra tudo o que é para ser sabido sobre a arte de viver.
Penso
que Deus deve ter sido um artista brincalhão para inventar coisas
tão incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso.
Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de inventar
a culinária.
Nasci
em Minas e o meu corpo está cheio de memórias de infância. Entre
os prazeres da cozinha mineira estava o frango com quiabo, que se
comia com angu e pimenta. Receita: um frango, cortado em pedaços.
Pode ser, também, só coxa, só peito – de acordo com o gosto. Um
quilo de quiabo macio. Refogar o frango até dourar, em uma xícara
de óleo ou azeite, com os temperos de gosto: alho, cebola, orégano.
Cortar o quiabo em rodelinhas. Noutra panela, refogar muito bem o
quiabo com caldo de limão, para tirar a baba. Se ainda restar baba,
coá-la num escorredor de macarrão. Juntar o quiabo aos pedaços do
frango, com dois tomates picados. Cozinhar tudo até o frango ficar
macio. Alguns preferem o frango com o quiabo quase sopa, com bastante
caldo, para ser tomado com colher. Com angu e pimenta. Ou arroz. De
qualquer jeito é bom.
Das
velhas cidades históricas de Minas Gerais, a que mais amo é
Tiradentes. Frango com ora-pro-nobis, sopa de fubá com
ora-pro-nobis. Foi em Tiradentes que encontrei o prato estrangeiro
mais divertido. O dono do restaurante quis que o cardápio fosse em
duas línguas – para dar um status internacional ao
estabelecimento e lá escreveu na seção das carnes: “against
file...”.
Duas
tristezas. A primeira é não ter fome quando a comida está servida
na mesa. A segunda é ter fome quando não há comida na mesa. A vida
acontece entre essas duas tristezas. O encontro entre fome e comida
tem o nome de alegria.
Há
um ditado que diz: “Primeiro comer, depois filosofar”. Certo
seria dizer: “Primeiro filosofar, depois comer”. Dessa forma, a
dignidade filosófica da arte culinária ficaria reconhecida e
estabelecida.
O
sabor vive no lugar onde a visão morre. Os olhos não veem o que
está dentro da boca.
O
gosto não tem porquês. É gostoso porque é gostoso.
Rubem Alves, em Do universo à jabuticaba
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