sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Culinária

A culinária consta de duas partes. Primeira: fogo, fogões, panelas, caldeirões, azeite, óleo, água, conchas, colheres, facas, temperos, legumes, cereais, carnes, peixes, aves. Segunda: sopa, arroz com feijão, frango com quiabo e pimenta, moquecas, feijoadas, saladas, peixe na telha, assados, bifes, tomates recheados, aperitivos, sobremesas, bebidas. A primeira parte não dá prazer. São ferramentas, matérias-primas, utensílios, em si mesmos sem gosto. Não há culinária sem eles. Mas eles não fazem a culinária.
São apenas meios para a produção do objeto de prazer. Utensílios sofisticados e importados não bastam para que a comida seja boa. É preciso que haja a ação de um feiticeiro – Babette era uma feiticeira (veja o filme A festa de Babette), Tita era uma feiticeira (veja o filme Como água para chocolate) – cozinheiro. Culinária é feitiçaria. A segunda parte resulta de um ritual mágico de transformações: o banquete. O objetivo do banquete é servir felicidade – prazer e alegria – sob a forma de comida. Quem compreende a culinária é sábio. Na culinária se encontra tudo o que é para ser sabido sobre a arte de viver.
Penso que Deus deve ter sido um artista brincalhão para inventar coisas tão incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de inventar a culinária.
Nasci em Minas e o meu corpo está cheio de memórias de infância. Entre os prazeres da cozinha mineira estava o frango com quiabo, que se comia com angu e pimenta. Receita: um frango, cortado em pedaços. Pode ser, também, só coxa, só peito – de acordo com o gosto. Um quilo de quiabo macio. Refogar o frango até dourar, em uma xícara de óleo ou azeite, com os temperos de gosto: alho, cebola, orégano. Cortar o quiabo em rodelinhas. Noutra panela, refogar muito bem o quiabo com caldo de limão, para tirar a baba. Se ainda restar baba, coá-la num escorredor de macarrão. Juntar o quiabo aos pedaços do frango, com dois tomates picados. Cozinhar tudo até o frango ficar macio. Alguns preferem o frango com o quiabo quase sopa, com bastante caldo, para ser tomado com colher. Com angu e pimenta. Ou arroz. De qualquer jeito é bom.
Das velhas cidades históricas de Minas Gerais, a que mais amo é Tiradentes. Frango com ora-pro-nobis, sopa de fubá com ora-pro-nobis. Foi em Tiradentes que encontrei o prato estrangeiro mais divertido. O dono do restaurante quis que o cardápio fosse em duas línguas – para dar um status internacional ao estabelecimento e lá escreveu na seção das carnes: “against file...”.
Duas tristezas. A primeira é não ter fome quando a comida está servida na mesa. A segunda é ter fome quando não há comida na mesa. A vida acontece entre essas duas tristezas. O encontro entre fome e comida tem o nome de alegria.
Há um ditado que diz: “Primeiro comer, depois filosofar”. Certo seria dizer: “Primeiro filosofar, depois comer”. Dessa forma, a dignidade filosófica da arte culinária ficaria reconhecida e estabelecida.
O sabor vive no lugar onde a visão morre. Os olhos não veem o que está dentro da boca.
O gosto não tem porquês. É gostoso porque é gostoso.

Rubem Alves, em Do universo à jabuticaba

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