sábado, 1 de junho de 2024

O sonho

Murray sonhou um sonho.
A psicologia vacila quando tenta explicar as aventuras do nosso eu imaterial em suas andanças pela região do sonho, “gêmeo da morte”.
Este relato não quer ser explicativo: limitar-se-á a registrar o sonho de Murray.
Uma das fases mais enigmáticas dessa vigília do sonho, é que, acontecimentos que parecem abarcar meses ou anos, ocorrem em minutos ou instantes.
Murray aguardava a morte cm sua cela de condenado. Um foco elétrico no teto baixo do corredor iluminava sua mesa. Em uma folha de papel branco uma formiga corria de um lado para outro e Murray bloqueou-lhe o caminho com um envelope. A eletrocução teria lugar às nove da noite. Murray sorriu diante da agitação do mais sábio dos insetos.
No pavilhão havia sete condenados à morte. Desde que estava ali, três já tinham sido conduzidos: um, enlouquecido e brigando como um lobo preso em uma armadilha; outro, não menos louco, ofertando ao céu uma devoção hipócrita; e o terceiro, um covarde, desmaiou e tiveram que amarrá-lo a uma tábua. Perguntou-se como responderiam por ele seu coração, suas pernas e sua cara; porque era esta a sua noite. Pensou que já eram quase nove horas.
No outro lado do corredor, na cela em frente, estava encarcerado Carpani, o siciliano que havia matado sua noiva e dois policiais que foram prendê-lo. Muitas vezes, de cela a cela, haviam jogado damas, gritando cada um a jogada para o seu parceiro invisível.
Uma grande voz retumbante, de indestrutível qualidade musical, chamou: — Então, senhor Murray. Como se sente? Bem?
Muito bem, Carpani — disse Murray serenamente, deixando que a formiga pousasse sobre o envelope e depositando-a com suavidade no chão de pedra.
É assim que eu gosto, senhor Murray. Homens como nós têm que saber morrer como homens. Na semana que vem é a minha vez. É assim que eu gosto. Lembre-se, senhor Murray, que eu ganhei a última partida de clamas. Talvez voltemos a jogar outra vez.
A estoica pilhéria de Carpani, seguida de uma gargalhada ensurdecedora, deu novo alento a Murray; é verdade que Carpani tinha ainda uma semana de vida.
Os encarcerados ouviram o ruído seco dos ferrolhos ao abrir-se a porta no extremo do corredor. Três homens avançaram até a cela de Murray e abriram-na. Dois eram guardas; o outro era Frank — mio, isto era antes, agora ele se chamava reverendo Francisco Winston —, amigo e vizinho em seus anos de miséria.
Consegui que me deixassem substituir o capelão da prisão — disse, ao apertar a mão de Murray. Na mão esquerda tinha uma pequena Bíblia entreaberta.
Murray sorriu levemente e arrumou uns livros e uma lapiseira na mesa. Teria gostado de falar, mas não sabia o que dizer. Os presos davam o nome de Rua do Limbo a este pavilhão de vinte e três metros de comprimento por nove de largura. O guardião habitual da Rua do Limbo, um homem imenso, rude e bondoso, tirou do bolso um frasco de uísque e ofereceu a Murray dizendo: — É costume, você sabe. Todos bebem para tomar ânimo. Não há perigo de se viciarem.
Murray sorveu um grande gole.
É assim que eu gosto — disse o guardião. Um bom calmante e tudo sairá bem.
Saíram para o corredor e os condenados o souberam. A Rua do Limbo é um mundo fora do mundo, e se lhe falta algum dos sentidos, o substitui por outro. Todos os condenados sabiam que eram quase as nove, e que Murray iria para a cadeira às nove. Há também, nas muitas Ruas do Limbo, uma hierarquia do crime. O homem que mata abertamente, na paixão da luta, menospreza a ratazana humana, a aranha, a serpente. Por isso, dos sete condenados somente três gritaram suas despedidas a Murray, quando este se afastou pelo corredor entre as sentinelas: Carpani; Marvin, que ao tentar uma evasão havia assassinado um guarda; e Basset, o ladrão que teve que matar porque um inspetor, num trem, se recusou a levantar as mãos.
Os outros quatro guardavam um humilde silêncio.
Murray se maravilhava com sua própria serenidade e quase indiferença. Na sala das execuções havia uns vinte homens, empregados da cadeia, jornalistas e curiosos que...
Neste momento, no meio de uma frase, o sonho foi interrompido pela morte de O. Henry. Sabemos, contudo, o final: Murray, acusado e condenado pelo assassinato de sua amada, enfrenta seu destino com inexplicável serenidade. Conduzem-no à cadeira elétrica. Amarram-no.
Imediatamente a câmara, os espectadores, os preparativos da execução lhe parecem irreais. Pensa que é vítima de um erro terrível. Por que o prenderam nesta cadeira? Que fez ele? Que crime cometeu? Acorda: ao seu lado estão sua mulher e seu filho. Compreende que o assassinato, o processo, a sentença de morte, a cadeira elétrica, são um sonho. Ainda trêmulo, beija o rosto da mulher. Nesse momento o eletrocutam.
A execução interrompe o sonho de Murray.

O. Henry, in Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

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