sexta-feira, 3 de maio de 2024

A Formação do Jovem

Não que tenha sido a primeira conversa de homem para homem que tive com meu filho Bentão, mas acho que, desta última vez, fui ainda menos homem que ele do que da outra vez. A primeira vez foi na praia e, vergonhosamente, saí pela tangente, alegando a comissão de erros de português por parte dele, embora, é claro, ele fosse analfabeto na ocasião (ainda é, mas agora tem carteira de estudante). Nós estávamos dentro d’água e ele quis saber se podia me fazer uma pergunta. Claro que sim, respondi, com minha melhor cara de pai companheiro, aprendida nos filmes americanos.
É uma pergunta difícil — disse ele.
Qualquer pergunta para seu pai é difícil, ha-ha. Pode perguntar.
Você dá beijo de novela em minha mãe, não dá?
Eu o quê? Beijo de novela? Sim, beijo de novela. Bem, acho que sim, beijo de novela, claro, sim, acho que sim, de vez em quando eu dou uns beijos de novela nela. Vamos pegar siri?
E você sente uma coisa?
Sente uma coisa, como? Sente uma coisa? E... Não, é só um beijinho de novela, todo marido dá beijo de novela na mulher. Olhe ali, pegue aquele pedaço de pau, hoje está dando siri, vamos lá!
Você sente um arrupeio?
Hein? Um arrupeio?
Eu vi um homem na televisão dando um beijo de novela na mulher e eles dois gemeram e ele deu um arrupeio. Quando você beija minha mãe, você geme e tem um arrupeio?
Um arrup... Bem... Olha lá o siri, pegue o pau, olha lá o siri!
Você sente um arrupeio, assim como o homem da televisão, assim, hrrrrrr?
A palavra certa não é arrupeio! Arrupeio está errado, o certo é arrepio, arrepio, ouviu bem? Você...
Você só diz arrupeio.
Eu... Sim, eu digo arrupeio porque sou meio tabaréu sergipano, aprendi isso em Muribeca. Mas você nunca esteve em Muribeca e é no máximo tabaréu português, portanto tem que dizer arrepio e não arrupeio. Arrupeio é errado, ouviu bem? Aliás, o senhor já fez o dever de casa? Eu vou falar com sua professora e mostrar a ela que o senhor só sabe o B, o C e o H, assim mesmo com o nome de “escadinha”, e conta um-dois-quatro-nove-oito-dez, o senhor ouviu bem?
Olha ali o siri, pai, pegue o pau, olhe o siri!
Mas não tinha siri nenhum por perto quando eu estava na sala, lendo o jornal, e minha mulher apareceu na companhia dele, que vinha com uma cara meio intrigada.
Pronto — disse ela. — Converse aí com seu pai.
Converse com o seu pai o quê? — disse eu, que ainda não tinha me recuperado do arrupeio.
Ele precisa ter uma conversa de homem para homem com você.
Conversa de homem para homem? Ele disse isso?
Não, não disse. Eu é que achei que era conversa de homem para homem. Pai é pai. Bem, com licença, que eu tenho de ir lá dentro tratar o peixe.
Tratar o peixe? Você, tratando peixe? Mentirosa! Você já ameaçou fugir de casa se tivesse que tratar peixe! Não existe essa conversa de homem para homem! Volte aqui! Mulher machista! Não me deixe sozinho aqui! Machista!
Está bem, se você quiser eu fico.
Não, tudo bem, besteira minha, eu compreendo essas coisas, besteira minha. Eu posso perfeitamente conversar com meu filho.
Então tudo bem, eu vou lá para dentro.
Está bem. Espere aí, só um instantinho. O que é que ele quer conversar?
Ele quer saber o que é camisinha.
Hein? O que é... Pra que é que ele quer saber o que é camisinha? Que ideia é essa? Volte aqui! Mulher machista, volte aqui! Se você me deixar sozinho aqui, é o divórcio, entendeu, é o tudo acabado entre nós hoje de madrugada! Fique aqui! Que cara é essa, por que este olhar fixo em mim?
Eu estou esperando que você dê a explicação.
Camisinha... Por que é que você quer saber o que é camisinha, Bentão?
Eu vi na televisão. O homem disse que todo mundo deve usar a camisinha para não ficar doente no hospital. Você usa camisinha?
Eu... Mulher!
Você disse que podia perfeitamente conversar com seu filho.
Sim, claro. Mas você podia ajudar, você bem que podia!
Você me dá uma camisinha sua, pai? Se eu não usar a camisinha, eu também fico doente no hospital?
Bem, a camisinha... Mulher, como é que eu faço?
Se eu soubesse, eu fazia.
Bem, meu filho, a camisinha... Vamos fazer o seguinte, depois eu explico, está bem? É um pouco complicado, eu vou pensar num jeito de explicar, está bem?
Está. Mas você promete que usa a camisinha para não ficar doente no hospital? Eu não quero que você fique doente no hospital.
Prom... Depois eu explico, depois eu explico, filho, está bem?
Está. Essa televisão daqui passa no Rio de Janeiro?
Mais ou menos. Quase tudo.
Então pode não passar o aviso da camisinha e então eu vou telefonar para meu avô para ele usar a camisinha para não ficar doente no hospital.
Telefonar para seu avô? Não, não precisa, o aviso passa lá, pode ter certeza. Eu explico depois, está bem? Depois.
Depois esse que ainda não chegou. Discuti a questão metodológica com a mulher. Para explicar a camisinha, tem de explicar tudo, não adianta enrolar. Como é, vamos comprar uns livrinhos desses em que a abelhinha voa de florzinha em florzinha, o galo pula em cima da galinha e o nenenzinho fica na barriguinha da mãezinha? Vamos ler uns livros de psicologia infantil e pirar de vez? Não, livro de psicologia infantil, não, jamais. Sabem do que mais? Vai ficar tudo por isso mesmo, não vou explicar coisa nenhuma.
Mulher — disse eu, com sotaque sergipano que emprego nessas situações de liderança familiar —, já resolvi o que vou fazer. Não vou fazer é nada, isso é tudo encucação nossa, daqui a pouco ele esquece isso, não vai ter problema nenhum. A mim nunca ninguém ensinou nada, sabia? Nunca ninguém ensinou nada, entendeu?
Eu sei, querido — disse ela.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

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