A
poetisa traz-nos seu primeiro livro, porém não o entrega logo. Fica
estudando nossa expressão fisionômica antes de confiar-nos a suma
de tantas vivências. Fala de coisas vagas, que se tornam mais vagas
ainda, pela indecisão da palavra. Certa amiga comum nos manda
lembranças. Podemos fornecer o endereço de mestre Fulano? Parece
que é difícil encontrá-lo em casa, qual a melhor hora? As
informações são prestadas, enquanto, por nossa humilde vez,
inspecionamos a poetisa. Usa vestido elegante, sob a capa elegante. É
alta, morena, jovem. Um adjetivo clareia, com espontaneidade de
espelho: bonita. Parece que clareou em nosso olhar, pois ela baixa a
cabeça e contempla uma formiguinha no linóleo, onde — é claro —
não passa nenhuma formiguinha. O livro continua preso na mão
esquerda, sem que possamos desvendar-lhe o título: pudicamente, só
aparece a brancura da contracapa. Não que haja figura ou dizeres
obscenos a ocultar. A poetisa oculta sua poesia, nesse primeiro
contato com o exterior. Passamos à ofensiva:
— Que
é isso que você tem aí?
— Isso
quê?…
— O
livro.
— Nada,
não. É um livro.
— Deixe
ver, se não é segredo de Estado.
Não
era, mas o inimigo contemporiza: “Daqui a pouquinho”. O leitor,
que acaso nos segue, achará a moça demasiado tímida ou esperta;
com o nosso relativo conhecimento da alma literária, diremos que
ela, ciente e emocionada, simplesmente retardava um momento
irreparável: o momento em que seu livro deixaria o regaço materno
para expor-se à condição de artigo-do-dia, olhado, pegado,
comentado sem amor. Por isso a moça nos sondava antes de praticar a
doação.
Acabou
admitindo que publicara um livro; que trazia consigo um exemplar; que
esse exemplar nos era destinado; mas não lhe pusera dedicatória e,
conforme fosse a recepção, voltaria com a autora. Quisemos saber a
razão de tamanha reserva. Desconversou, mas somos praça velha, e
ouvimos o conto:
— Levei
um exemplar ao Barata, colunista da Folha.
— Então?
— Me
convidou para um drink.
— Que
mal tem nisso, minha filha?
— Bom…
Nem olhou para o livro, olhou só para mim, entende?
Entendíamos.
Mas o Barata — ponderamos — não é propriamente crítico
literário, e, como observa o prof. Afrânio Coutinho, há uma big
diferença entre reviewer e crítico.
— Pois
sim, o Lessa é crítico e também me convidou para um drink.
Sem abrir o livro. Será que hoje é moda beber com o autor, antes de
ler?
Não
soubemos explicar à poetisa, e preferimos indagar se porventura os
drinks lhe flagelam o fígado. Ela sorriu.
— Eu
adoro um alexander ou um cuba-libre. Mas pensei que não
fosse preciso tomá-lo para merecer um julgamento ou uma notícia.
Tranquilizamo-la
a nosso respeito: não escrevemos sobre livros, não frequentamos
bares, não a convidaríamos para drincar. Parece que a assustou um
pouco nossa austeridade romana, se é que não vislumbrou nisso um
truque novo. Afinal, o braço moveu-se, o livro foi entregue. Sem
dedicatória.
— Não
vai escrever nada?
— Que
gostaria que eu escrevesse?
— Ah,
isso você não era capaz de escrever.
Queria
oferecer-nos louvores suaves, mas temia que a interpretássemos de
outro jeito: queria ser seca, não podia; natural, não podia. Então
deu-nos o livro sem dedicatória e, rapidamente, convidou-nos a tomar
um drink.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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