Havia
em Paris, durante a época do Império, treze homens igualmente
movidos pelos mesmos sentimentos, dotados de uma grande energia que
lhes possibilitava permanecerem fiéis ao mesmo pensamento,
igualmente honrados entre si, de tal modo que seriam incapazes de se
traírem uns aos outros, mesmo quando seus interesses se achavam em
campos opostos; eram, ao mesmo tempo, habilidosos politicamente para
dissimular os sagrados laços que os uniam, fortes o suficiente para
enfrentar todas as leis, suficientemente ousados para empreender tudo
e felizes o bastante para quase sempre alcançar sucesso em seus
desígnios; haviam corrido os maiores perigos, mas calavam suas
derrotas; eram inacessíveis ao medo e não tremeram nem diante dos
príncipes, nem frente ao carrasco, nem perante a inocência;
aceitavam-se inteiramente uns aos outros, tais como eram, sem dar
atenção aos preconceitos sociais; sem dúvida, eram criminosos, mas
certamente homens notáveis por algumas dessas qualidades que se
encontram nos grandes homens, e haviam sido escolhidos entre os
melhores. Enfim, para que nada faltasse à poesia sombria e
misteriosa desta história, esses treze homens permaneceram
desconhecidos, ainda que tenham posto em prática as idéias mais
bizarras que sugerem à imaginação a fantástica pujança atribuída
falsamente a Manfred, a Fausto e a Melmoth;[1] e todos hoje em dia se
encontram domados, ou pelo menos dispersos. Colocaram-se
pacificamente sob o jugo das leis civis, do mesmo modo que Morgan,[2]
o Aquiles dos piratas, transformou-se de rapinante em colono
tranqüilo e gozou sem o menor remorso, à luz da lareira doméstica,
os milhões reunidos entre o sangue derramado, à claridade vermelha
dos incêndios.
Depois
da morte de Napoleão, um acontecimento que o autor não deve
mencionar ainda rompeu os laços dessa vida secreta e tão curiosa
como o mais negro dos romances da sra. Radcliffe.[3] A permissão
bastante estranha para relatar à sua maneira algumas das aventuras
pelas quais esses homens passaram, desde que respeitando algumas
convenções, só lhe foi dada recentemente por um desses heróis
anônimos pelos quais a sociedade inteira foi inadvertidamente
subjugada e em quem ele pareceu descobrir um vago desejo de
celebridade.
Esse
homem, aparentemente ainda jovem, com cabelos louros e olhos azuis,
cuja voz doce e clara parecia anunciar uma alma feminina, tinha um
rosto pálido e maneiras misteriosas, conversava com grande
amabilidade, fingia ter apenas quarenta anos e poderia pertencer às
classes sociais mais elevadas. O nome que ele usava parecia ser um
nome suposto; sua pessoa era desconhecida na sociedade elegante. Quem
é ele? Ninguém sabe.
Talvez,
ao confiar ao autor as coisas extraordinárias que revelou, o
desconhecido quisesse vê-las reproduzidas de alguma forma e
alegrar-se com as emoções que fariam nascer no coração das
multidões um sentimento semelhante ao que animava Macpherson[4]
quando o nome de Ossian, sua criatura, era pronunciado em todas as
línguas. E essa era, certamente, para o advogado escocês, uma das
emoções mais vivas que sentiu, uma das sensações mais raras, pelo
menos, que alguém possa provocar em si mesmo. E permanecer assim
anônimo não é uma obra de gênio? Escrever O itinerário de
Paris a Jerusalém[5] é tomar parte na glória humana de um
século inteiro; mas dar a seu próprio país um novo Homero não é
o mesmo que usurpar um atributo divino?
O
autor conhece demasiadamente bem as leis da narrativa para ignorar os
compromissos que este curto prefácio o leva a assumir; mas ele
também conhece o bastante da História dos Treze para ter
certeza de jamais se encontrar abaixo do interesse que deve inspirar
este programa. Dramas com sabor de sangue, comédias cheias de
terror, romances em que rolam cabeças secretamente cortadas, tudo
isso lhe foi confiado. Se algum leitor não estivesse saciado dos
horrores friamente servidos ao público nos últimos tempos, o autor
poderia lhe revelar calmas atrocidades, tragédias familiares
surpreendentes, bastando que o desejo de conhecê-las lhe fosse
manifestado. Mas ele escolheu as aventuras mais suaves, aquelas em
que cenas puras se sucedem à tempestade das paixões e nas quais a
mulher irradia virtudes e beleza. Para a honra dos Treze, episódios
desse tipo também se encontram em sua história, que talvez um dia
tenha a honra de ser considerada no mesmo pé das aventuras de
piratas, essa gente à parte, tão curiosamente enérgica, tão
atraente apesar de seus crimes.
Um
escritor deve evitar converter seus relatos, quando eles descrevem
fatos verdadeiros, em uma espécie de caixa de surpresas ou fazer os
leitores passearem, à maneira de alguns romancistas, durante quatro
volumes, de subterrâneo em subterrâneo, até mostrar a eles um
cadáver ressequido e dizer, à guisa de conclusão, que esteve a
lhes provocar constantemente o medo de uma porta oculta por detrás
de alguma tapeçaria ou de um morto abandonado por descuido sob as
tábuas do assoalho. Apesar de sua aversão aos prefácios, o autor
achou conveniente introduzir estas palavras no início deste
fragmento. Ferragus é um primeiro episódio que se prende por
laços invisíveis à História dos Treze, cuja energia
naturalmente adquirida é a única coisa que pode explicar alguns de
seus aspectos aparentemente sobrenaturais. Ainda que seja permitido
aos narradores ostentar uma espécie de vaidade literária, ao se
tornarem historiadores eles devem renunciar aos benefícios que
produz a aparente estranheza dos títulos sobre os quais se
fundamentam hoje os breves sucessos. Desse modo, o autor explicará
aqui, sucintamente, as razões que o obrigaram a aceitar títulos
aparentemente pouco naturais.
Ferragus
é, segundo um velho costume, um nome adotado por um dos chefes dos
Devoradores. No dia de sua eleição, esses chefes decidem continuar
aquela, dentre as dinastias devoradorescas, cujo nome mais lhe
agrada, do mesmo modo que fazem os papas no início de seus reinados,
com relação às dinastias pontifícias. Assim, os Devoradores têm
Trempe-la-Soupe IX [Tempera-Sopa], Ferragus XXII, Tutanus XIII ou
Masche-Fer IV [Masca-Ferro], do mesmo modo que a Igreja tem os seus
Clemente XIV, Gregório IX, Júlio II, Alexandre VI etc. Tudo bem,
mas o que são os Devoradores? Dévorants ou Devoradores é o
nome de uma das tribos de Companheiros ou Compagnons que
surgiram da grande associação mística formada entre os operários
da Cristandade com o objetivo de reconstruir o templo de Jerusalém.
A “Companhia”, ou a Compagnonnage, ainda floresce entre o
povo da França. Suas tradições, ainda poderosas em cérebros pouco
esclarecidos de pessoas que não têm instrução suficiente para
quebrar seus juramentos, poderiam servir para poderosas empresas, se
algum gênio conseguisse assumir o controle destas diversas
sociedades. De fato, todos os seus instrumentos são quase cegos;
nelas, de cidade em cidade, existe para os Companheiros, desde tempos
imemoriais, uma Obade, uma espécie de hospedaria mantida por
uma Mãe, uma velha meio boêmia, que não tem nada a perder e que
sabe de tudo o que se passa na região, devotada, seja por medo, seja
em consequência de um longo hábito, à tribo que ela aloja e
alimenta. Enfim, esta gente muda, mas permanece submetida a costumes
imutáveis e pode ter olhos em todos os lugares e executar por toda
parte uma ordem sem discutir, porque o mais velho dos Companheiros
ainda se encontra em uma idade em que se pode acreditar em alguma
coisa. Aliás, o corpo inteiro professa doutrinas muito verdadeiras,
bastante misteriosas, que permitem eletrizar patrioticamente todos os
adeptos, desde que elas sejam minimamente desenvolvidas. Isso porque
a fidelidade dos Companheiros às suas leis é tão apaixonada que as
diversas tribos travam entre si combates sangrentos só para defender
algumas questões de princípios. Felizmente, para a ordem pública
atual, quando um Devorador é ambicioso, ele constrói mansões, faz
fortuna e abandona a Companhia. Haveria muitas coisas curiosas a
revelar sobre os Companheiros do Dever, os rivais dos Devoradores, e
sobre todas as diferentes seitas de operários, sobre seus costumes e
suas fraternidades, sobre os relacionamentos que existem entre eles e
a Maçonaria; mas os detalhes ficariam deslocados se fossem incluídos
aqui. O autor somente ajuntará que, sob a antiga monarquia, não era
incomum encontrar-se um Trempe-la-Soupe a serviço do Rei, contratado
por 101 anos para remar em suas galés; mas de lá dominando sempre
sua tribo e consultado religiosamente por ela; e depois, se ele
conseguisse fugir de sua tripulação de remadores, teria plena
certeza de encontrar ajuda, socorro e respeito em todos os lugares.
Ver seu chefe preso nas galés não significa para sua fiel tribo
nada mais que um desses infortúnios pelos quais a Providência é
responsável, mas que não dispensa os Devoradores de obedecer ao
poder criado por eles para governar sobre eles. É um exílio
momentâneo de seu rei legítimo, mas que nem por isso deixa de ser
seu rei. Eis aqui portanto, completamente dissipado, o prestígio
romanesco anexado ao nome de Ferragus e ao dos Devoradores.
Quanto
aos Treze, o autor sente-se ainda fortemente apoiado sobre os
detalhes desta história quase romântica para abdicar ainda de um
dos mais belos privilégios do romancista de que tem notícia e que,
no Châtelet[6] da literatura, poderia ser adjudicado a alto preço e
impor ao público tantos volumes quantos lhe deu a Contemporânea[7].
Todos os Treze eram homens provados pela vida, tal como foi Trelawny,
o amigo de Lord Byron que, segundo dizem, foi o original de O
corsário; todos fatalistas, gente de coragem e de poesia, mas
aborrecidos pela vida corriqueira que levavam, conduzidos a gozos
asiáticos por forças que, tanto mais excessivas por se acharem
adormecidas por longo tempo, se revelavam ainda mais furiosas. Certo
dia, um deles, depois de haver relido A Veneza salva[8],
depois de haver admirado a união sublime de Pierre e de Jaffier,
começou a sonhar com as virtudes características daquelas pessoas
que eram alijadas para fora da ordem social, com a probidade dos
condenados, com a fidelidade dos ladrões entre si, com os
privilégios de poder exorbitante que esses homens sabem conquistar
ao confundir todas as ideias em uma só vontade. Aqui ele encontrou
um homem maior que os homens. Ele presumiu que toda a sociedade
deveria pertencer àquelas pessoas que, devido a seu espírito
natural, em razão de seus conhecimentos adquiridos e em virtude de
sua fortuna, se poderiam unir em um fanatismo tão cálido que
fundiria em um único jato todas essas forças diferentes. A partir
desse momento, imenso em ação e intensidade, sua pujança oculta,
contra a qual a ordem social não teria defesas, venceria todos os
obstáculos, reuniria todas as vontades em uma só e daria a cada um
deles o poder diabólico de todos. Esta sociedade à parte dentro da
sociedade e hostil à sociedade, não admitindo quaisquer das ideias
da sociedade, não reconhecendo quaisquer de suas leis, submetendo-se
tão-somente à consciência de suas próprias necessidades,
obedecendo apenas a seu devotamento, agiria inteiramente em favor de
um único de seus associados quando qualquer deles reclamasse a
assistência de todos; esta vida opulenta de flibusteiros de luvas
amarelas e esta união íntima de gente superior, fria e escarninha,
sorridente e reprobatória no meio de uma sociedade falsa e
mesquinha; a certeza de que tudo poderia ser dobrado por força de um
capricho, que uma vingança poderia ser urdida com habilidade, que
seria possível viver com treze corações; e depois, a felicidade
contínua de gozar de um segredo de ódio diante dos homens, de estar
sempre armado contra eles e de poder retirar-se para dentro de si
mesmo com uma ideia superior àquela que experimentavam as pessoas
mais notáveis; esta religião de prazer e de egoísmo fanatizou
treze homens, que reiniciaram a Sociedade de Jesus em benefício do
diabo. Somente isso já foi horrível e sublime. Depois, o pacto foi
firmado; e a seguir, ele durou, precisamente porque parecia ser
impossível. Houve então em Paris treze irmãos que se pertenciam
mutuamente e que fingiam desconhecer-se quando em sociedade; mas que
se reencontravam e se reuniam todas as noites como conspiradores, não
escondendo sequer um pensamento dos outros e usando conjuntamente uma
fortuna semelhante à do Velho da Montanha[9]; tendo os pés em todos
os salões, as mãos em todos os cofres-fortes, os cotovelos na rua,
as cabeças sobre todas as orelhas e sem o menor escrúpulo,
sacrificando tudo no altar de sua fantasia. Nenhum chefe os
comandava, ninguém podia arrogar-se tal poder; somente a paixão
mais viva e a circunstância mais exigente passavam para o primeiro
plano. Foram treze reis desconhecidos, mas realmente reis e, mais do
que reis, juízes e carrascos que, depois de abrirem suas próprias
sendas a fim de percorrerem a sociedade de alto a baixo, desdenharam
de assumir qualquer posição de mando dentro dela, porque dentro
dela podiam tudo. Se o autor ficar conhecendo as causas de sua
abdicação, ele as contará.
Notas:
[1].
Personagens de Lord Byron (1788-1824), Johann Wolfgang von Goethe
(1749-1832) e Charles Robert Maturin (1782-1824) que têm em comum o
fato de haverem concluído um pacto com potências demoníacas que
lhes deram poderes sobre-humanos. (N.T.)
[2].
Sir Henry Morgan (1635-1688), aventureiro inglês que durante cinco
anos pilhou as colônias espanholas das Antilhas e da América
Central, sendo depois nomeado governador da ilha da Jamaica, onde
terminou sua vida pacificamente. (N.T.)
[3].
Ann Radcliffe (1764-1823): escritora inglesa, autora de romances
góticos, como As memórias de Udolfo, no final dos quais todos os
acontecimentos aparentemente sobrenaturais do enredo tinham um
desfecho racional. (N.T.)
[4].
James Macpherson (1736-1796), literato escocês, cuja celebridade se
deve à publicação dos Poemas de Ossian, que ele fingiu haver
traduzido dos escritos de um antigo bardo celta. Ossian, por sua vez,
é uma figura histórica, filho de Fingal, rei dos Morven, uma tribo
irlandesa. Liderou uma confederação contra as invasões romanas de
Sétimo Severo e de Caracala, conseguindo manter a independência da
ilha. (N.T.)
[5].
Obra do célebre escritor francês François-René Chateaubriand,
publicada em 1811.
[6].
A Place du Châtelet era o lugar de Paris em que, na época,
realizavam-se os leilões públicos. (N.T.)
[7].
Elselina Vanayl de Yongh, chamada Ida de Saint-Elme, atriz e
escritora cuja celebridade se deve à publicação de Memórias de
uma contemporânea, em 1827, redigida a partir de suas anotações
por Armand Malitourne (1797-1866), historiador e amigo de Balzac.
Aproveitando o sucesso do livro e sob o pseudônimo de A
contemporânea, ela publicou uma série de relatos escandalosos
que obteve grande sucesso. (N.T.)
[8].
Tragédia do dramaturgo inglês Thomas Otway (1652-1685). Nesse
drama, a cumplicidade que une os dois heróis é exemplar. Em Ilusões
perdidas, Vautrin pergunta a Rubempré se ele “compreendeu esta
amizade profunda que liga Pierre e Jaffier” e, em O pai Goriot,
ele se gaba a Rastignac por saber de cor A Veneza salva.
(N.T.)
[9].
Apelido atribuído a Hassan Ben-Sabbah, que fundou no século XI a
seita herética dos Assassinos (do árabe hashishi, comedores
de haxixe), estendendo seu poder sobre parte da Pérsia e da Síria.
(N.T.)
Honoré de Balzac, in História dos Treze
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