quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

História dos Treze | Prefácio



Havia em Paris, durante a época do Império, treze homens igualmente movidos pelos mesmos sentimentos, dotados de uma grande energia que lhes possibilitava permanecerem fiéis ao mesmo pensamento, igualmente honrados entre si, de tal modo que seriam incapazes de se traírem uns aos outros, mesmo quando seus interesses se achavam em campos opostos; eram, ao mesmo tempo, habilidosos politicamente para dissimular os sagrados laços que os uniam, fortes o suficiente para enfrentar todas as leis, suficientemente ousados para empreender tudo e felizes o bastante para quase sempre alcançar sucesso em seus desígnios; haviam corrido os maiores perigos, mas calavam suas derrotas; eram inacessíveis ao medo e não tremeram nem diante dos príncipes, nem frente ao carrasco, nem perante a inocência; aceitavam-se inteiramente uns aos outros, tais como eram, sem dar atenção aos preconceitos sociais; sem dúvida, eram criminosos, mas certamente homens notáveis por algumas dessas qualidades que se encontram nos grandes homens, e haviam sido escolhidos entre os melhores. Enfim, para que nada faltasse à poesia sombria e misteriosa desta história, esses treze homens permaneceram desconhecidos, ainda que tenham posto em prática as idéias mais bizarras que sugerem à imaginação a fantástica pujança atribuída falsamente a Manfred, a Fausto e a Melmoth;[1] e todos hoje em dia se encontram domados, ou pelo menos dispersos. Colocaram-se pacificamente sob o jugo das leis civis, do mesmo modo que Morgan,[2] o Aquiles dos piratas, transformou-se de rapinante em colono tranqüilo e gozou sem o menor remorso, à luz da lareira doméstica, os milhões reunidos entre o sangue derramado, à claridade vermelha dos incêndios.
Depois da morte de Napoleão, um acontecimento que o autor não deve mencionar ainda rompeu os laços dessa vida secreta e tão curiosa como o mais negro dos romances da sra. Radcliffe.[3] A permissão bastante estranha para relatar à sua maneira algumas das aventuras pelas quais esses homens passaram, desde que respeitando algumas convenções, só lhe foi dada recentemente por um desses heróis anônimos pelos quais a sociedade inteira foi inadvertidamente subjugada e em quem ele pareceu descobrir um vago desejo de celebridade.
Esse homem, aparentemente ainda jovem, com cabelos louros e olhos azuis, cuja voz doce e clara parecia anunciar uma alma feminina, tinha um rosto pálido e maneiras misteriosas, conversava com grande amabilidade, fingia ter apenas quarenta anos e poderia pertencer às classes sociais mais elevadas. O nome que ele usava parecia ser um nome suposto; sua pessoa era desconhecida na sociedade elegante. Quem é ele? Ninguém sabe.
Talvez, ao confiar ao autor as coisas extraordinárias que revelou, o desconhecido quisesse vê-las reproduzidas de alguma forma e alegrar-se com as emoções que fariam nascer no coração das multidões um sentimento semelhante ao que animava Macpherson[4] quando o nome de Ossian, sua criatura, era pronunciado em todas as línguas. E essa era, certamente, para o advogado escocês, uma das emoções mais vivas que sentiu, uma das sensações mais raras, pelo menos, que alguém possa provocar em si mesmo. E permanecer assim anônimo não é uma obra de gênio? Escrever O itinerário de Paris a Jerusalém[5] é tomar parte na glória humana de um século inteiro; mas dar a seu próprio país um novo Homero não é o mesmo que usurpar um atributo divino?
O autor conhece demasiadamente bem as leis da narrativa para ignorar os compromissos que este curto prefácio o leva a assumir; mas ele também conhece o bastante da História dos Treze para ter certeza de jamais se encontrar abaixo do interesse que deve inspirar este programa. Dramas com sabor de sangue, comédias cheias de terror, romances em que rolam cabeças secretamente cortadas, tudo isso lhe foi confiado. Se algum leitor não estivesse saciado dos horrores friamente servidos ao público nos últimos tempos, o autor poderia lhe revelar calmas atrocidades, tragédias familiares surpreendentes, bastando que o desejo de conhecê-las lhe fosse manifestado. Mas ele escolheu as aventuras mais suaves, aquelas em que cenas puras se sucedem à tempestade das paixões e nas quais a mulher irradia virtudes e beleza. Para a honra dos Treze, episódios desse tipo também se encontram em sua história, que talvez um dia tenha a honra de ser considerada no mesmo pé das aventuras de piratas, essa gente à parte, tão curiosamente enérgica, tão atraente apesar de seus crimes.
Um escritor deve evitar converter seus relatos, quando eles descrevem fatos verdadeiros, em uma espécie de caixa de surpresas ou fazer os leitores passearem, à maneira de alguns romancistas, durante quatro volumes, de subterrâneo em subterrâneo, até mostrar a eles um cadáver ressequido e dizer, à guisa de conclusão, que esteve a lhes provocar constantemente o medo de uma porta oculta por detrás de alguma tapeçaria ou de um morto abandonado por descuido sob as tábuas do assoalho. Apesar de sua aversão aos prefácios, o autor achou conveniente introduzir estas palavras no início deste fragmento. Ferragus é um primeiro episódio que se prende por laços invisíveis à História dos Treze, cuja energia naturalmente adquirida é a única coisa que pode explicar alguns de seus aspectos aparentemente sobrenaturais. Ainda que seja permitido aos narradores ostentar uma espécie de vaidade literária, ao se tornarem historiadores eles devem renunciar aos benefícios que produz a aparente estranheza dos títulos sobre os quais se fundamentam hoje os breves sucessos. Desse modo, o autor explicará aqui, sucintamente, as razões que o obrigaram a aceitar títulos aparentemente pouco naturais.
Ferragus é, segundo um velho costume, um nome adotado por um dos chefes dos Devoradores. No dia de sua eleição, esses chefes decidem continuar aquela, dentre as dinastias devoradorescas, cujo nome mais lhe agrada, do mesmo modo que fazem os papas no início de seus reinados, com relação às dinastias pontifícias. Assim, os Devoradores têm Trempe-la-Soupe IX [Tempera-Sopa], Ferragus XXII, Tutanus XIII ou Masche-Fer IV [Masca-Ferro], do mesmo modo que a Igreja tem os seus Clemente XIV, Gregório IX, Júlio II, Alexandre VI etc. Tudo bem, mas o que são os Devoradores? Dévorants ou Devoradores é o nome de uma das tribos de Companheiros ou Compagnons que surgiram da grande associação mística formada entre os operários da Cristandade com o objetivo de reconstruir o templo de Jerusalém. A “Companhia”, ou a Compagnonnage, ainda floresce entre o povo da França. Suas tradições, ainda poderosas em cérebros pouco esclarecidos de pessoas que não têm instrução suficiente para quebrar seus juramentos, poderiam servir para poderosas empresas, se algum gênio conseguisse assumir o controle destas diversas sociedades. De fato, todos os seus instrumentos são quase cegos; nelas, de cidade em cidade, existe para os Companheiros, desde tempos imemoriais, uma Obade, uma espécie de hospedaria mantida por uma Mãe, uma velha meio boêmia, que não tem nada a perder e que sabe de tudo o que se passa na região, devotada, seja por medo, seja em consequência de um longo hábito, à tribo que ela aloja e alimenta. Enfim, esta gente muda, mas permanece submetida a costumes imutáveis e pode ter olhos em todos os lugares e executar por toda parte uma ordem sem discutir, porque o mais velho dos Companheiros ainda se encontra em uma idade em que se pode acreditar em alguma coisa. Aliás, o corpo inteiro professa doutrinas muito verdadeiras, bastante misteriosas, que permitem eletrizar patrioticamente todos os adeptos, desde que elas sejam minimamente desenvolvidas. Isso porque a fidelidade dos Companheiros às suas leis é tão apaixonada que as diversas tribos travam entre si combates sangrentos só para defender algumas questões de princípios. Felizmente, para a ordem pública atual, quando um Devorador é ambicioso, ele constrói mansões, faz fortuna e abandona a Companhia. Haveria muitas coisas curiosas a revelar sobre os Companheiros do Dever, os rivais dos Devoradores, e sobre todas as diferentes seitas de operários, sobre seus costumes e suas fraternidades, sobre os relacionamentos que existem entre eles e a Maçonaria; mas os detalhes ficariam deslocados se fossem incluídos aqui. O autor somente ajuntará que, sob a antiga monarquia, não era incomum encontrar-se um Trempe-la-Soupe a serviço do Rei, contratado por 101 anos para remar em suas galés; mas de lá dominando sempre sua tribo e consultado religiosamente por ela; e depois, se ele conseguisse fugir de sua tripulação de remadores, teria plena certeza de encontrar ajuda, socorro e respeito em todos os lugares. Ver seu chefe preso nas galés não significa para sua fiel tribo nada mais que um desses infortúnios pelos quais a Providência é responsável, mas que não dispensa os Devoradores de obedecer ao poder criado por eles para governar sobre eles. É um exílio momentâneo de seu rei legítimo, mas que nem por isso deixa de ser seu rei. Eis aqui portanto, completamente dissipado, o prestígio romanesco anexado ao nome de Ferragus e ao dos Devoradores.
Quanto aos Treze, o autor sente-se ainda fortemente apoiado sobre os detalhes desta história quase romântica para abdicar ainda de um dos mais belos privilégios do romancista de que tem notícia e que, no Châtelet[6] da literatura, poderia ser adjudicado a alto preço e impor ao público tantos volumes quantos lhe deu a Contemporânea[7]. Todos os Treze eram homens provados pela vida, tal como foi Trelawny, o amigo de Lord Byron que, segundo dizem, foi o original de O corsário; todos fatalistas, gente de coragem e de poesia, mas aborrecidos pela vida corriqueira que levavam, conduzidos a gozos asiáticos por forças que, tanto mais excessivas por se acharem adormecidas por longo tempo, se revelavam ainda mais furiosas. Certo dia, um deles, depois de haver relido A Veneza salva[8], depois de haver admirado a união sublime de Pierre e de Jaffier, começou a sonhar com as virtudes características daquelas pessoas que eram alijadas para fora da ordem social, com a probidade dos condenados, com a fidelidade dos ladrões entre si, com os privilégios de poder exorbitante que esses homens sabem conquistar ao confundir todas as ideias em uma só vontade. Aqui ele encontrou um homem maior que os homens. Ele presumiu que toda a sociedade deveria pertencer àquelas pessoas que, devido a seu espírito natural, em razão de seus conhecimentos adquiridos e em virtude de sua fortuna, se poderiam unir em um fanatismo tão cálido que fundiria em um único jato todas essas forças diferentes. A partir desse momento, imenso em ação e intensidade, sua pujança oculta, contra a qual a ordem social não teria defesas, venceria todos os obstáculos, reuniria todas as vontades em uma só e daria a cada um deles o poder diabólico de todos. Esta sociedade à parte dentro da sociedade e hostil à sociedade, não admitindo quaisquer das ideias da sociedade, não reconhecendo quaisquer de suas leis, submetendo-se tão-somente à consciência de suas próprias necessidades, obedecendo apenas a seu devotamento, agiria inteiramente em favor de um único de seus associados quando qualquer deles reclamasse a assistência de todos; esta vida opulenta de flibusteiros de luvas amarelas e esta união íntima de gente superior, fria e escarninha, sorridente e reprobatória no meio de uma sociedade falsa e mesquinha; a certeza de que tudo poderia ser dobrado por força de um capricho, que uma vingança poderia ser urdida com habilidade, que seria possível viver com treze corações; e depois, a felicidade contínua de gozar de um segredo de ódio diante dos homens, de estar sempre armado contra eles e de poder retirar-se para dentro de si mesmo com uma ideia superior àquela que experimentavam as pessoas mais notáveis; esta religião de prazer e de egoísmo fanatizou treze homens, que reiniciaram a Sociedade de Jesus em benefício do diabo. Somente isso já foi horrível e sublime. Depois, o pacto foi firmado; e a seguir, ele durou, precisamente porque parecia ser impossível. Houve então em Paris treze irmãos que se pertenciam mutuamente e que fingiam desconhecer-se quando em sociedade; mas que se reencontravam e se reuniam todas as noites como conspiradores, não escondendo sequer um pensamento dos outros e usando conjuntamente uma fortuna semelhante à do Velho da Montanha[9]; tendo os pés em todos os salões, as mãos em todos os cofres-fortes, os cotovelos na rua, as cabeças sobre todas as orelhas e sem o menor escrúpulo, sacrificando tudo no altar de sua fantasia. Nenhum chefe os comandava, ninguém podia arrogar-se tal poder; somente a paixão mais viva e a circunstância mais exigente passavam para o primeiro plano. Foram treze reis desconhecidos, mas realmente reis e, mais do que reis, juízes e carrascos que, depois de abrirem suas próprias sendas a fim de percorrerem a sociedade de alto a baixo, desdenharam de assumir qualquer posição de mando dentro dela, porque dentro dela podiam tudo. Se o autor ficar conhecendo as causas de sua abdicação, ele as contará.

Notas:
[1]. Personagens de Lord Byron (1788-1824), Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e Charles Robert Maturin (1782-1824) que têm em comum o fato de haverem concluído um pacto com potências demoníacas que lhes deram poderes sobre-humanos. (N.T.)
[2]. Sir Henry Morgan (1635-1688), aventureiro inglês que durante cinco anos pilhou as colônias espanholas das Antilhas e da América Central, sendo depois nomeado governador da ilha da Jamaica, onde terminou sua vida pacificamente. (N.T.)
[3]. Ann Radcliffe (1764-1823): escritora inglesa, autora de romances góticos, como As memórias de Udolfo, no final dos quais todos os acontecimentos aparentemente sobrenaturais do enredo tinham um desfecho racional. (N.T.)
[4]. James Macpherson (1736-1796), literato escocês, cuja celebridade se deve à publicação dos Poemas de Ossian, que ele fingiu haver traduzido dos escritos de um antigo bardo celta. Ossian, por sua vez, é uma figura histórica, filho de Fingal, rei dos Morven, uma tribo irlandesa. Liderou uma confederação contra as invasões romanas de Sétimo Severo e de Caracala, conseguindo manter a independência da ilha. (N.T.)
[5]. Obra do célebre escritor francês François-René Chateaubriand, publicada em 1811.
[6]. A Place du Châtelet era o lugar de Paris em que, na época, realizavam-se os leilões públicos. (N.T.)
[7]. Elselina Vanayl de Yongh, chamada Ida de Saint-Elme, atriz e escritora cuja celebridade se deve à publicação de Memórias de uma contemporânea, em 1827, redigida a partir de suas anotações por Armand Malitourne (1797-1866), historiador e amigo de Balzac. Aproveitando o sucesso do livro e sob o pseudônimo de A contemporânea, ela publicou uma série de relatos escandalosos que obteve grande sucesso. (N.T.)
[8]. Tragédia do dramaturgo inglês Thomas Otway (1652-1685). Nesse drama, a cumplicidade que une os dois heróis é exemplar. Em Ilusões perdidas, Vautrin pergunta a Rubempré se ele “compreendeu esta amizade profunda que liga Pierre e Jaffier” e, em O pai Goriot, ele se gaba a Rastignac por saber de cor A Veneza salva. (N.T.)
[9]. Apelido atribuído a Hassan Ben-Sabbah, que fundou no século XI a seita herética dos Assassinos (do árabe hashishi, comedores de haxixe), estendendo seu poder sobre parte da Pérsia e da Síria. (N.T.)

Honoré de Balzac, in História dos Treze

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