sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

A captura de Zé Bebelo


[...]

Sobre o no meio daquele rebuliço, menos colhi de ver e de escutar. Os chefes tinham apeado dos cavalos, e os homens, todos, em balbúrdia com sensatez. Só Candelário não arredava pé de Joca Ramiro, e explicava as diversas coisas, com grandes gestos, quase ele não dava conta de se falar. A demora era pouca. Aí o forte bando tinha de se aluir para adiante, em redobro de marcha ― iam para ferrar fogo, em lugar e hora determinados ― semelhante se soube. Tempo de beberem um café. Mas Joca Ramiro veio de lá, em alargados vagarosos passos, queria correr o acampamento, saudar um e outro, a palavrinha que fosse, um dito de apreço e apraz. O andar dele ― vi certo: alteado e imponente, como o de ninguém. Diadorim olhava; e também tinha lágrimas vindo por caso. Decidido, deu um à-frente, pegou a mão de Joca Ramiro, beijou. Joca Ramiro, que firme contemplando, só um instante, seja, mas o docemente achável, com um calor diferente de amizade. A quantia que ele gostava de Diadorim! ― e pousou nas costas dele um abraço. Ao que, se virou para nós, que estávamos. E eu fiz como Diadorim ― nem sei porque: peguei a mão daquele homem, beijei também. Todos, os que eram mais moços, beijavam. Os mais velhos tinham vergonha de beijar. ― Este aqui é o Riobaldo, o senhor sabe? Meu amigo. A alcunha que alguns dizem é Tatarana... Isto Diadorim disse. A tento, Joca Ramiro, tornando a me ver, fraseou: Tatarana, pêlos bravos... Meu filho, você tem as marcas de conciso valente. Riobaldo... Riobaldo... Disse mais: ― Espera. Acho que tenho um trem, para você... Mandou vir o dito, e um cabra chamado João Frio foi lá nos cargueiros, e trouxe. Era um rifle reiúno, peguei: mosquetão de cavalaria. Com aquilo, Joca Ramiro me obsequiava! Digo ao senhor! minha satisfação não teve beiras. Pudessem afiar inveja em mim, pudessem. Diadorim me olhava, com um contentamento. Me chamou de lado. Vi que, mesmo sendo assim querido e escolhido de Joca Ramiro, ele procedia mais de ficar de longe, por ninguém se queixar, não acharem que ali havia afilhadagem. ― Não é que ele é mesmo o chefe de todos? Não é que é mandante? ― Diadorim me perguntava. Era. Mas eu não percebi o vivo do tempo que passava. Eles já estavam indo de saída. Montado no cavalo branco, Joca Ramiro deu uma despedida. Vi que ele com os olhos caçou Diadorim. Sô Candelário gritou! ― Viva Jesus, em rotas e vantagens! E, num bufúrdio, todos esporaram, andaram, ao assaz. A alta poeira, que demorava. Aquilo parecia uma música tocando.
Desde ver, a figura dele tinha parado no meio da gente, noutra coisa não se falava. Aí em festa feita a gente tramava nas armas! Joca Ramiro entrava direto em combate, então ia ser o fim da guerra! ― Sô Candelário queria ir também, mas teve de aceitar ordem de ficar... ― Diadorim me explicou. Segundo disse ― que Sô Candelário, por aquela ânsia e soência, de avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a boa regra de tudo. Seria para ficar de espera, tapando o mundo aos que aqui o mundo quisessem. Assim, mais, Joca Ramiro tinha mandado! que nosso grupo se repartisse, em aos três ou quatro piquetes, para valer de vigiar bem os vaus e suas estradas. Diadorim e eu fizemos parte duma turma dessas, duns quinze homens, chefia de João Curiol ― fomos para a baixa dos Umbuzeiros, lugar feio, com os gravatás poeirentos e uns levantados de pedra. Partindo desse vau, a gente pega uma chapadinha ― a Chapada-da-Seriema-Correndo. A que parecia mesmo de propósito. Porque foi lá, com todo o efeito, que a cara da caça se apareceu. Aquilo, terrível. Conto já ao senhor, duma vez.
Terrível, tido, por causa da ligeireza com que aquilo veio. Surpresa a gente sempre tem, o senhor sabe, mesmo em espera! dá a vez, e não se vê, à parva. Não se crê que é. Tão de repente. O vento vinha bom, da parte deles chegarem, de formas que o galope pronto se ouviu. Escoramos as armas. Assim que eles eram uns vinte. Passaram o ribeirão, com tanta pressa, que a água se esguichou farta, vero bonito aquilo no sol. Demos fogo.
Do que podia suceder. Vi homem despencado demais, os cavalos patatrás! Dada a desordem. Só cavalo sozinho podia fugir, mas os homens no chão, no cata, cata. Ao que, a gente atirava! Se morria, se matava, matava? Os cavalos, não. Mas teve um, veio, à de se doidar, se espinoteava, o cavaleiro não aguentava na rédea, chegaram até perto de nós, aí todos os dois morreram de repente. Meu senhor! tudo numa estraga extraordinária. Mas aqueles eram homens! Trampe logo que puderam, os sobrantes deles se desapearam e rastejaram, respondendo ao fogo. Ah, puderam tomar oculto atrás de outras fragas de pedra, nisso a gente não conseguiu ter mão. Ainda deviam de ser uns dez, ou uns oito. Afa que gritavam, em febre de ódio, xingando todo nome. A gente, também. Anhãnhãe, berrávamos fogo, quando sinal de homem tremeluzia. As balas rachavam as pedras, só partiam escalhas. Um se mostrou, caíu logo. Munição deles era pouca. Fugir, mesmo, não podiam. A gente atirava. Aí deviam de ser uns seis ― que é a meia-dúzia. ― Aoê, sabe quem está lá, comandando? ― o rastejador Roque me disse. ― Sabe quem? Ah, eu sabia. Eu tinha sabido, o em desde o primeiro momento. Era quem eu não queria para ser. Era Zé Bebelo!
Assim eu condenado para matar.
Aqui eu não sei o que o senhor não sabe. ― A fogo! A crêvo! ― isto João Curiol gritava. Antes do depois, neles a gente ia ir a pano de facão. ― Tralha! Lá vai obra, cão, carujo! Roncôlho! ― isto era a voz de Zé Bebelo, gritava. Eu não gritei. Diadorim também atirava calado. Munição deles ― quase nenhuma. Eles deviam de ser uns quatro, ou três. O cano do meu rifle esquentava demais. ― Roncólho! Toma... Um Freitas, nosso, gritou, caíu muito ferido. A bala era de Zé Bebelo. Atiramos, grosso. Eles respondendo. Respondiam pouco. Deviam de ser... os quantos? Digo ao senhor: eu gostava de Zé Bebelo. Redigo ― que eu menos atirava do que pensava. Como era possível, assim, com minha ajuda, a morte dele? Um homem daquela qualidade, o corpo dele, a ideia dele, tudo que eu sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre ― Zé Bebelo ― a gente tinha que pensar. Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio das duras pedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eu carregava? Arresto gritei: ― Joca Ramiro quer esse homem vivo! Joca Ramiro quer este homem vivo! Joca Ramiro faz questão!... A que nem não sei como tive o repente de isso dizer ― falso, verdadeiro, inventado...
Firme gritei, repeti.
Os outros companheiros aceitavam aquilo, diziam também, até João Curiol: ― Joca Ramiro quer este homem vivo! ― E ordem de Joca Ramiro! De lá não atiravam mais. Só bala ou outra, só. ― Arre, à unha, chefe? ― o Sangue-de-Outro perguntou. João Curiol respondeu que não. Eles deviam de estar reservando balas para um final. ― Ordem de Joca Ramiro: é pegar o homem vivo... ― ainda eu disse. Ali Zé Bebelo eu salvasse. Todos aprovaram. Eu sei, eu sei? O senhor agora vai não me entender. O como são as coisas. Todos me aprovaram ― e, aí, extraordinariamente, eu dei um salto de espírito. O que? Mas, então, eu não tinha pensado tudo, o real?! O que era que eu estava fazendo, que era que eu estava querendo ― que pegassem vivo Zé Bebelo, em carnes e ossos, para depois judiarem com ele, matarem de outro pior jeito, a fácil?! Minha raiva deu em mim. Me mordi, me abri, me-amargo. Tanto tudo ia sendo sempre por minha culpa! E daí pedi tudo ao rifle e às cartucheiras. Eu atirava, atirava! queria, por toda a lei, alcançar um tiro em Zé Bebelo, para acabar com ele de uma vez, sem martírio de sofrimentos. ― Tu está louco, Riobaldo? ― Diadorim gritou, rastejando para perto de mim, travando em meu braço. ― Joca Ramiro quer o homem vivo! Joca Ramiro quer, deu ordem! ― todos agora me gritavam. Assim contra mim, assim todos. O que eu havia de desmentir? E não vi direito, o fato. O que vi foi Zé Bebelo aparecendo, de repente, garnizé. O que ele tinha numa mão, era o punhal; na outra uma garrucha grande, fogo-central. Mas descarregou a garrucha, atirando no chão, perto dos pés dele, mesmo. Arrancou poeira. Por trás daquela poeira ele reapareceu, dava pensamento assim ― aprumado, teso de briga. Lampejou com o punhal, e esperou. Ele mesmo estava querendo morrer à brava, depressamente. Olhei, olhei. De atirar nele, de todo jeito não tive coragem. Ah, não tinha! E um dos nossos, não sei quem, jogou o laço. Zé Bebelo mal ainda bateu com um pé, por se firmar, e caíu, arrastado, voz que gritou! ― Canalha! Canalha! Mas todos foram nele, desarmaram do punhal. Eu parei quieto, vago, se me estranho. Não queria, ah não queria que ele me reconhecesse.
[…]

Guimarães Rosa, in Grande Sertão: Veredas

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