Estava
no trabalho quando o telefone avisou: tinha de viajar imediatamente.
Alguém, longe, morrera de súbito, e era preciso tomar o primeiro
avião de carreira, depois alugar um táxi-aéreo a tempo de assistir
ao sepultamento.
Assim,
pois, a notícia sempre esperada, como se espera, sem se desejar,
alguma coisa inevitável, chegara justamente num dia em que,
repousando de tão constante cuidado, o coração nada prevenira, ele
que tantas vezes dera rebate falso. Se acordava pela madrugada, sem
querer, ficava perguntando a si mesmo quando viria o chamado. Em
reuniões festivas, de repente, parecia-lhe que o fato, sem o
chamado, acontecera, e estava perdendo um tempo precioso à espera de
que o segundo revelasse o primeiro. A razão reagia contra
pressentimentos, e logo vinha uma carta dando notícias de saúde,
mas através dessas notícias filtrava-se a inquietação já
habitual: até quando? Sabia que, no fundo de sua vida, uma viagem
apressada se elaborava, e nem mesmo podia tranquilizar-se com a
esperança de que chegaria a tempo de ver se cerrarem os olhos, e
recolher, se não uma palavra, pelo menos um sinal fugitivo, que
condensa muitas coisas. Bastava que no dia baixasse a névoa seca, e
os aviões ficassem pousados, para que fosse impossível estabelecer
esse contato último.
Viver
numa grande cidade é quase sempre estar longe. Não podemos reunir
os objetos e as pessoas, e grosseiramente preferimos os objetos.
Deixamos na terra natal, além de recordações plantadas no ar,
pessoas de saúde frágil e idade avançada, às quais prometemos que
nossa visita não vai demorar e se repetirá a qualquer pretexto.
Mesquinhas ocupações, cansaço, displicência, tédio de viajar por
lugares muito sabidos, cisma de avião, tudo isso e mil pequenos
motivos nos afastam de nossa promessa. Acabamos apenas escrevendo
cartas. Cartas, cartas! Repetem mecanicamente um carinho que devia
ser cálido e físico, carregam abstrações, sombra de beijos, não
beijos. E chega um dia em que já não recebemos cartas em resposta
às que continuamos a mandar. As pessoas distantes atingiram essa
altura desolada em que papel e tinta nada significam: a mão já não
pode traçar aquelas linhas sempre as mesmas, e a comunicação se
faz por intermediários, a uma distância cada vez maior, porque
temos de interpretar a nuança de uma intenção, onde há apenas
recado de terceiro.
E
um dia vem o chamado urgente: é preciso deixar tudo e ir na direção
de um corpo, apenas um corpo, que representa tão pouco da antiga
combinação viva de semblante e memórias, um rosto que alguns se
recusam a desvendar, porque iria superpor-se a outra imagem
iluminada, que nem o tempo adulterara e que, mesmo, poliu e repoliu
com requinte de ourives. Assim, pagamos com uma viagem precipitada o
preço de muitas viagens que não fizemos e que instilam em nossa
saudade uma coloração de remorso.
Mas
a palavra é tão dura que custa jogá-la aqui, sem maior
disquisição. Remorso do que apenas deixamos de fazer, quando
poderíamos ter feito? Do mal que a nós mesmos nos infligimos,
reduzindo nosso amor ao limite do possível? Sim, deve ser isso:
todos os pecados se resumem na ausência ou na redução do amor a um
sentimento adaptável às circunstâncias, e que pode esperar, quando
ele é por natureza o insofrido, o insaciável, o exigente devorador.
Contudo, não nos julguemos mais omissos do que realmente fomos. Esse
“podia-ter-sido-diferente” ainda é amor, sobrevivendo a
omissões.
A
todo instante, numa cidade como o Rio, pessoas são convidadas a
tomar o primeiro avião. Gostaria de consolá-las, explicando-lhes
que é possível guardar dentro de nós aquilo que perdemos no
espaço.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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