Querida
vó Antônia, ainda tenho tanto pra contar… Mas nossa conversa não
termina aqui.
Recentemente,
publiquei um livro escrito por dezoito mulheres quilombolas e me
emocionei quando uma delas me mandou uma foto que a mostrava lendo o
livro para a matriarca de seu quilombo. Vi você ali, feliz pela neta
que conseguiu estudar. Venho de uma dinastia de empregadas
domésticas, lavadeiras, quituteiras, mestras nas sabedorias de
multiplicar, que sempre lutaram para que a gente também pudesse ser
“doutora”.
Eu
lhe perguntei como você lidava com o racismo, mas a verdade é que,
independentemente de como foi, saiba que hoje sou referência no
enfrentamento a essa violência. Sou porque você foi. Minha mãe
saiu de casa com dezoito anos rumo a uma vida incerta, eu tive
coragem de escolher estudar em outra cidade mesmo quando tudo era
incerto também. Tive a quem puxar. Você era a benzedeira das
multidões, centenas de pessoas faziam fila para receber seu
atendimento. Você fazia a comida render para alimentar uma família
grande. Quando benzia, quando enterrava feitiços no quintal, você
fazia cultura negra — mesmo sem saber. Quanto disso ainda está em
mim e se potencializa de outras formas?
Não
ter vivido mais tempo com você e minha mãe me fez aceitar a
tristeza. Há dias tristes em que tento preencher o vazio com belas
canções e poemas de amor. Suprir minha carência com sonhos antigos
e lembranças. Há dias tristes em que preciso chorar a mágoa da
vida, a oportunidade perdida e a falta dos dias de sol. Há dias
tristes em que devo ao menos me dar migalhas de esperança e aceitar
a dor. O peito aperta, a tv não pega e a chuva encharca as roupas no
varal. Histórias de amor acabam, algumas dublagens são ruins,
pessoas se afastam, caminhos são separados. Bifurcações existem e
a hora do adeus também, e impedir as lágrimas é arrogância.
Porque há dias tristes, aceno para a vida. Há dias tristes para que
eu me lembre que a felicidade vem de mim, há dias tristes para que
eu aprenda a valorizar minha alegria. Não há de se brigar com os
dias tristes e nem fugir deles. Há de se aceitar que a vida também
é feita de dias tristes.
Eu
não me afundo na amargura, pois tive uma avó que ensinou que chá
de boldo também cura.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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