Estou
escrevendo sobre um texto aqui publicado e chamado “Você é um
número”. Do dia 7 de agosto, sábado. E escrevendo com a maior
pressa para logo atingir quem por acaso tenha sido atingido do modo
errado.
Senti
– mas senti mesmo – no ar quanto desagradei com o tal texto. Eu
própria me ofendia. E sabia que ofendia os outros. Não. Você não
é um número. Nem eu.
Porque
há o inefável. O amor não é um número. A amizade não é. Nem a
simpatia. A elegância é algo que flutua. E se Deus tem número –
eu não sei. A esperança também não tem número. Perder uma coisa
é inefável: nunca sei onde as coloquei. Inclusive perco até a
lista de coisas a não perder. Morte é inefável. Mas a vida também
o é. Inclusive ser é de um provisório impalpável. Consideração
também. A criatividade.
Isto
que estou escrevendo parece um labirinto, mas tem largos portões de
saída. Inclusive uma criança chamada Clarice deu-me um quadro muito
bonito que era um labirinto verde. E tudo isto é inefável. Vi um
papagaio verde no domingo – um louro – que emitia sons e estava
aprendendo a imitar a fala humana. E tudo isto é inefável. É
inefável o fato de eu ter acabado de escrever um conto chamado
“Labirinto” também. Clarice e Clarice se entendem.
Explico
por que quero tomar lições de Matemática. É que tudo é tão
insolúvel. Então procurei encontrar um meio de achar soluções.
Juro que preciso de soluções. Não posso ficar assim completamente
no ar. E agradeço a carta que recebi do dia 10 de agosto.
Transcrevo-a literalmente:
Liberdade
eu tomo de te escrever e se tu me permites respondendo à tua crônica
“Você é um número”, publicada no Jornal
do Brasil de 7 de agosto de 1971 – sábado. Lendo-a
aflorou em mim um sentido de defesa ao número e que eu espero que tu
compreendas. Não tenho segundas intenções. Lê por favor o que te
envio.
A
carta aí faz uma grande pausa e continua:
E
por que te preocupa o número? Tu não vives em função do número
do Félix Pacheco, embora ele te seja necessário. Tu vives em função
da palavra e do pensamento. E tu não medes as palavras e tu não
contas os pensamentos. Corre em tua veia o sangue que não se soma. E
a Matemática não é o essencial. Tu não precisas aprendê-la
porque tu sabes mais do que ela. Porque tu amas o Belo e o Belo não
se divide. É íntegro apesar de existir em várias formas.Tu
caminhas em campos abertos e claros e tu sentes o que não se apalpa.
Então por que te preocupar com o número que nada te traz?
Deixa
que o número viva e não te confundas com a sua existência pois não
é ele o alimento do teu espírito.
A
carta é assinada à máquina e só o primeiro nome. Não posso
citá-lo porque é o nome de uma pessoa que não gostaria de ser
confundida pois não é de todo a espécie de pessoa que escreveu a
carta. Estou sendo entendida?
Peço-lhe
desculpas. Profundamente. Até o ar que respiramos é inefável e
inefável é o que senti quando li sua carta. Para não perder o bom
humor vou pôr o seguinte entre parênteses: as teclas de sua máquina
precisam de séria limpeza. Quase tanto quanto as minhas. Porque mal
se lê o que está escrito.
Continuo:
olhe, pessoa anônima, estou agora passando a limpo um livro que em
breve será publicado. E que é duro como um diamante. Pode até às
vezes faiscar. E só nas últimas páginas é que uso a mansidão e a
revolta e a aceitação.
E
como pretendo escrever uma história infantil chamada A vida de
Laura – é o nome de uma galinha – precisarei descansar um
pouco e cortar qualquer brilho excessivo aos olhos e qualquer
aspereza. Porque é preciso mansidão e muita quando se fala com
crianças. Vou inclusive simplesmente repousar. E falar devagar. Sem
pressa contar a minha história de galinha. Nessa história há
alegrias e tristezas e surpresas. Não vê que até já estou mais
mansa?
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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