terça-feira, 26 de setembro de 2023

Perdão, explicação e mansidão

Estou escrevendo sobre um texto aqui publicado e chamado “Você é um número”. Do dia 7 de agosto, sábado. E escrevendo com a maior pressa para logo atingir quem por acaso tenha sido atingido do modo errado.
Senti – mas senti mesmo – no ar quanto desagradei com o tal texto. Eu própria me ofendia. E sabia que ofendia os outros. Não. Você não é um número. Nem eu.
Porque há o inefável. O amor não é um número. A amizade não é. Nem a simpatia. A elegância é algo que flutua. E se Deus tem número – eu não sei. A esperança também não tem número. Perder uma coisa é inefável: nunca sei onde as coloquei. Inclusive perco até a lista de coisas a não perder. Morte é inefável. Mas a vida também o é. Inclusive ser é de um provisório impalpável. Consideração também. A criatividade.
Isto que estou escrevendo parece um labirinto, mas tem largos portões de saída. Inclusive uma criança chamada Clarice deu-me um quadro muito bonito que era um labirinto verde. E tudo isto é inefável. Vi um papagaio verde no domingo – um louro – que emitia sons e estava aprendendo a imitar a fala humana. E tudo isto é inefável. É inefável o fato de eu ter acabado de escrever um conto chamado “Labirinto” também. Clarice e Clarice se entendem.
Explico por que quero tomar lições de Matemática. É que tudo é tão insolúvel. Então procurei encontrar um meio de achar soluções. Juro que preciso de soluções. Não posso ficar assim completamente no ar. E agradeço a carta que recebi do dia 10 de agosto. Transcrevo-a literalmente:

Liberdade eu tomo de te escrever e se tu me permites respondendo à tua crônica “Você é um número”, publicada no Jornal do Brasil de 7 de agosto de 1971 – sábado. Lendo-a aflorou em mim um sentido de defesa ao número e que eu espero que tu compreendas. Não tenho segundas intenções. Lê por favor o que te envio.

A carta aí faz uma grande pausa e continua:

E por que te preocupa o número? Tu não vives em função do número do Félix Pacheco, embora ele te seja necessário. Tu vives em função da palavra e do pensamento. E tu não medes as palavras e tu não contas os pensamentos. Corre em tua veia o sangue que não se soma. E a Matemática não é o essencial. Tu não precisas aprendê-la porque tu sabes mais do que ela. Porque tu amas o Belo e o Belo não se divide. É íntegro apesar de existir em várias formas.Tu caminhas em campos abertos e claros e tu sentes o que não se apalpa. Então por que te preocupar com o número que nada te traz?
Deixa que o número viva e não te confundas com a sua existência pois não é ele o alimento do teu espírito.

A carta é assinada à máquina e só o primeiro nome. Não posso citá-lo porque é o nome de uma pessoa que não gostaria de ser confundida pois não é de todo a espécie de pessoa que escreveu a carta. Estou sendo entendida?
Peço-lhe desculpas. Profundamente. Até o ar que respiramos é inefável e inefável é o que senti quando li sua carta. Para não perder o bom humor vou pôr o seguinte entre parênteses: as teclas de sua máquina precisam de séria limpeza. Quase tanto quanto as minhas. Porque mal se lê o que está escrito.
Continuo: olhe, pessoa anônima, estou agora passando a limpo um livro que em breve será publicado. E que é duro como um diamante. Pode até às vezes faiscar. E só nas últimas páginas é que uso a mansidão e a revolta e a aceitação.
E como pretendo escrever uma história infantil chamada A vida de Laura – é o nome de uma galinha – precisarei descansar um pouco e cortar qualquer brilho excessivo aos olhos e qualquer aspereza. Porque é preciso mansidão e muita quando se fala com crianças. Vou inclusive simplesmente repousar. E falar devagar. Sem pressa contar a minha história de galinha. Nessa história há alegrias e tristezas e surpresas. Não vê que até já estou mais mansa?

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Nenhum comentário:

Postar um comentário