sábado, 16 de setembro de 2023

O propósito da vida é brincar

Sugestão poética para os teólogos: Deus como dono de uma loja de brinquedos. A sugestão não é original. Jacob Boehme(147) a fez muito antes. Para Boehme, o propósito da vida é brincar. “No brinquedo a vida se expressa na sua plenitude; portanto, o brinquedo como fim significa que a vida, ela mesma, tem um valor intrínseco... Quando Boehme se refere à vida de Deus tal como ela é em si mesma, ele se refere a ela como ‘brinquedo’... Adão deveria ter se contentado em brincar com a natureza, no Paraíso. ‘Da mesma forma como Deus brinca com o tempo desse mundo externo, assim o homem divino interno deveria brincar com as coisas externas’. Adão caiu quando o brinquedo se tornou coisa séria.”(148) O objetivo último da educação é ajudar-nos a permanecer crianças, ajudar- -nos a brincar sem que nos machuquemos. O “adulto”, morador da Feira das Utilidades, é criado pela educação como servo da criança eterna. O adulto é um servo da criança (149).
Nas línguas inglesa e alemã, as palavras que se usam para brincar, “play”, no inglês, e “spielen”, no alemão, são usadas também para se referir ao ato de tocar um instrumento. Um mesmo verbo para se referir àquilo que uma criança faz e àquilo que o artista faz. Essa coincidência não é acidental. Essas línguas sabem que o brinquedo e a arte são a mesma coisa. Brinquedo e arte são inúteis. São fins em si mesmos. O seu propósito é dar prazer e alegria. Não posso garantir que o que vou escrever seja uma citação ipsis verbis, mas posso garantir que o espírito é verdadeiro. Palavras do existencialista russo Nikolas Berdjaev: no Paraíso não existe nem ética nem política; somente estética. Com o que concorda Nietzsche: “Estou convencido de que a arte representa a tarefa mais alta e a tarefa realmente metafísica do homem. [...] A existência do mundo só se justifica como um fenômeno estético”.(150)

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(147) Jacob Boehme (1575- 1624), teólogo místico.
(148) Citado por Norman O. Brown, Life against Death, p. 33.
(149) Zaratustra: “O corpo é uma grande razão... E um instrumento do seu corpo é também a sua pequena razão, meu irmão, a que chamas pelo nome de ‘espírito’ – um pequeno instrumento e um brinquedo da sua grande razão. [...] Há mais razão no seu corpo que na sua melhor sabedoria”.
150 FN I (I), p. 14, O nascimento da tragédia.
O brinquedo e a arte são as únicas atividades permitidas no Paraíso. O poeta, o artista, a criança: esses são os seres paradisíacos. No Paraíso não existe trabalho. Existe apenas brinquedo e arte.(151)
(151) A ária, cantilena, das Bachianas brasileiras no 5 (que estou ouvindo agora) é absolutamente linda. Mas é absolutamente inútil. Não há nada que eu possa fazer com ela. Fico a pensar: que magia contém a melodia – essa voz de soprano que canta sem dizer uma única palavra, agora o veludo do violoncelo, um lamento –, que magia ela contém que me faz querer chorar? Incompreensível combinação essa: sinto alegria pela beleza e, ao mesmo tempo, vontade de chorar. Aforismo de William Blake: “O excesso de tristeza ri; o excesso de alegria chora” (William Blake, Poesia e prosa selecionadas, p. 39). A Valsinha, do Chico, a sonata Appassionata, de Beethoven, o Carinhoso – todos são inúteis. Mas dão alegria. Sobre a Appassionata, transcrevo trecho da tese A procura da palavra, de Severino Antônio Barbosa, p. 115: “Máximo Gorki conta em suas memórias que Lênin, depois de ouvir sonatas de Beethoven, fez uma confidência: ‘Não conheço nada de mais belo do que a sonata Appassionata; poderia ouvi-la todos os dias. Música surpreendente, sobre-humana. Digo-me sempre com um orgulho talvez ingênuo e pueril: ‘Que maravilhas os homens podem criar!’. Mas não posso ouvir música constantemente, ela age sobre os meus nervos, tenho vontade de dizer tolices e de acariciar as criaturas que, vivendo num inferno assim, podem criar tanta beleza...’”.

Rubem Alves, in Variações sobre o prazer

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