sábado, 16 de setembro de 2023

Como lhes aprouver


Na época em que a França era dividida em províncias (ou ducados, como lhes chamavam), reinava em uma delas um usurpador, que depusera e banira seu irmão mais velho, o duque legítimo.
Escorraçado dos seus domínios, o duque retirou-se, com alguns poucos que lhe permaneceram fiéis, para a floresta de Arden. E ali passou a viver com seus bons amigos, que se haviam reunidos voluntariamente, enquanto sua terra e rendimentos enriqueciam o usurpador. O costume logo lhes tornou a vida simples e modesta, mais doce do que a pompa e o incômodo esplendor da corte. Viviam como o velho Robin Hood, da Inglaterra. E diariamente recebiam, na floresta, jovens fidalgos que se retiravam da corte para ali passarem o tempo despreocupadamente, como se vivessem na Idade de Ouro. No verão deitavam-se à sombra das grandes árvores, entretidos com as brincadeiras dos veados selvagens. Tanto gostavam desses bichos travessos, habitantes nativos da floresta, que era com pesar que se viam forçados a matá-los, para se alimentar. Mesmo quando os ventos frios do inverno faziam o duque sentir a fatal mudança de sua sorte, ele a tudo suportava pacientemente dizendo:
Esses gélidos ventos que sopram sobre meu corpo são conselheiros fiéis. Não me lisonjeiam, mas me fazem ver com exatidão meu estado. Embora me mordam fundo, os seus dentes não são tão aguçados quanto os da maldade e da ingratidão. Digam o que disserem contra a adversidade, mas sempre algum bom proveito se tira dela, tal como a pedra, tão preciosa para a medicina, que se extrai da cabeça do venenoso e desprezado sapo.
Assim, o paciente duque tirava proveitosa moral de tudo quanto vivia. Graças a essa faceta filosófica de sua personalidade, alheia às aglomerações públicas, conseguia ele ver conselhos nas árvores, livros nas águas correntes, sermões nas pedras e proveito em tudo.
O duque proscrito tinha uma única filha, chamada Rosalinda, a quem o usurpador retivera na corte para servir de companheira à sua própria filha, Célia. Ambas eram unidas por uma estreita amizade, que nem as desavenças paternas conseguiram interromper. Célia tentava, por todos os meios, compensar Rosalinda da injustiça que seu pai praticara. Sempre que a amiga se entristecia à lembrança do pai banido e da dependência em que vivia na corte do usurpador, Célia empenhava-se em confortá-la e consolá-la.
Um dia em que Célia falava com sua habitual bondade a Rosalinda, dizendo-lhe que não ficasse triste, entrou um mensageiro do duque para avisá-las que, se quisessem assistir a uma luta, deviam comparecer imediatamente ao pátio exterior do palácio. Julgando que isso distrairia Rosalinda, Célia anuiu ao convite.
Naqueles tempos, a luta, hoje praticada apenas entre camponeses, era um passatempo apreciado até mesmo nas cortes reais e a ela assistiam distintas damas e princesas. Assim, Rosalinda e Célia foram presenciar o embate. Logo ao chegar, perceberam que aquilo redundaria em tragédia. Um alto e truculento homenzarrão, experiente na arte de lutar e tendo já matado muitos homens naquele gênero de desafio, preparava-se para se engalfinhar com um rapazote que, por sua extrema juventude e inexperiência, estava, na opinião de todos, fadado à morte.
Quando o duque viu Célia e Rosalinda, disse-lhes:
Então vieram assistir à luta? Pouco prazer hão de achar nisso. Os homens se dedicam, às vezes, a coisas estranhas... Por piedade para com esse jovem, eu desejaria dissuadi-lo de lutar. Falem com ele, meninas, e vejam se conseguem demovê-lo desse propósito.
Célia foi a primeira a pedir ao jovem desconhecido que desistisse do desafio. Depois, Rosalinda lhe falou tão bondosamente, com tanto sentimento pelo perigo que ele ia afrontar, que, em vez de se deixar convencer pelas gentis palavras dela, todos os ensejos do jovem foram de procurar se distinguir pela coragem aos olhos daquela encantadora dama. Recusou-se ao pedido de Célia e Rosalinda em termos tão graciosos que o interesse de ambas por ele aumentou:
Sinto negar o que quer que seja a tão belas e distintas damas. Mas que os vossos olhos e gentis desejos me acompanhem durante a luta. Se eu for vencido, a vergonha será para um homem que nunca teve muitos méritos; se me matarem, ficará morto um homem que queria morrer. Nenhum mal causarei aos meus amigos, pois não tenho ninguém que me lamente. Nenhum mal causei ao mundo, pois nada possuo. No mundo, apenas ocupo um lugar que será mais bem preenchido quando eu o deixar vago.
A luta começou. Célia desejava que o jovem desconhecido nada viesse a sofrer, mas foi Rosalinda quem mais sofreu por ele. A solidão em que ele dizia estar e seu desejo de morrer fizeram Rosalinda julgá-lo tão infeliz quanto ela própria. Tanta pena sentiu dele e tão profundo interesse tomou pela luta que quase se podia afirmar que ela ficara enamorada do jovem.
A bondade manifestada por aquelas lindas e nobres damas emprestou ao desconhecido coragem e força para realizar maravilhas. Afinal, ele venceu completamente seu antagonista, que ficou, por algum tempo, incapaz de falar ou se mover.
Admirado da coragem e destreza demonstradas pelo jovem, o duque Frederico desejou conhecer-lhe o nome e a família, no intuito de tomá-lo sob sua proteção.
Disse o desconhecido que se chamava Orlando e era o filho mais jovem de sir Rowland de Boys.
Sir Rowland de Boys, pai de Orlando, morrera alguns anos antes, mas, quando vivo, fora um fiel vassalo e grande amigo do duque deposto. Por conseguinte, quando Frederico ouviu que Orlando era filho do amigo de seu irmão, toda sua simpatia pelo bravo jovem se transformou em desagrado e ele se retirou de mau humor. Odiava ouvir o nome de qualquer amigo do irmão e, embora admirasse a coragem do jovem, declarou, ao ir embora, que desejava que Orlando fosse filho de qualquer outro homem.
Encantada de saber que seu novo favorito era filho de um velho amigo de seu pai, Rosalinda declarou a Célia:
Meu pai muito estimava a sir Rowland de Boys e, se eu soubesse que esse jovem era filho dele, teria reforçado com lágrimas meus pedidos para que ele não se aventurasse à luta.
As moças foram então ao seu encontro e, vendo-o perturbado com a súbita antipatia do duque, dirigiram-lhe bondosas e animadoras palavras. Quando ambas já se retiravam, Rosalinda ainda voltou atrás, para dizer mais algumas palavras amáveis ao bravo filho do amigo de seu pai. E, tirando um colar do pescoço, disse-lhe:
Cavalheiro, use isto como lembrança minha. A sorte não me corre favorável, senão eu lhe daria um presente mais valioso.
Quando as jovens ficaram a sós, Rosalinda continuou a falar de Orlando, de modo que Célia percebeu que a prima se enamorara do jovem lutador.
Será possível que te hajas apaixonado tão subitamente?
Meu pai era amicíssimo do pai dele — replicou Rosalinda.
Mas será isso razão para que ames dessa maneira ao filho? Nesse caso, eu devia odiá-lo, visto que meu pai odiava o pai dele. No entanto, não odeio Orlando.
Frederico se enchera de cólera à vista do filho de sir Rowland de Boys, pois ele lhe fizera lembrar os vários amigos com que o duque deposto contava entre a nobreza. E, como já fazia algum tempo que a sobrinha lhe caíra em desagrado, visto que o povo a louvava por suas virtudes e a lamentava pelo destino do pai, todo o rancor do duque explodiu de súbito contra Rosalinda. Assim, enquanto estavam as duas a falar de Orlando, Frederico penetrou no quarto e, com os olhos fuzilantes de cólera, ordenou a Rosalinda que deixasse imediatamente o palácio e fosse fazer companhia ao pai, no exílio, dizendo a Célia, a qual em vão rogava pela prima, que apenas consentira na permanência de Rosalinda por sua causa.
Eu não lhe pedi naquele tempo que a deixasse ficar, pois era muito pequena para poder apreciá-la — retrucou Célia. — Mas agora, que bem a conheço e que faz tanto tempo que dormimos juntas, levantamos ao mesmo tempo, estudamos, brincamos e comemos juntas, não posso viver sem a companhia dela.
Ela não te convém — retrucou o duque. — Sua doçura, silêncio e resignação falam ao povo. Todos se compadecem dela. És uma tola em defendê-la, pois tua beleza e teus dotes mais se farão valer quando ela for embora. Assim, não abras a boca em seu favor, pois a sentença que lavrei é irrevogável.
Ao compreender que não demoveria o pai, Célia resolveu generosamente acompanhar a prima e, abandonando naquela noite o palácio paterno, dirigiu-se com Rosalinda para a floresta de Arden, em busca do duque deposto.
Antes de partirem, Célia ponderou que seria perigoso para duas jovens damas viajarem com os ricos vestidos que traziam e propôs disfarçarem sua elevada posição, vestindo-se de camponesas. Rosalinda opinou que ficariam mais bem protegidas se uma delas se vestisse de homem. Assim, ficou combinado que Rosalinda, por ser mais alta, se disfarçaria de camponês, e Célia de camponesa, devendo fazer-se passar por irmãos. Rosalinda anunciou que se chamaria Ganimedes, escolhendo Célia o nome de Aliena.
Em tais disfarces, muniram-se de dinheiro e joias para as despesas, pois a floresta de Arden ficava muito distante, para além das fronteiras dos domínios do duque.
Rosalinda (ou Ganimedes, como iremos chamá-la agora), com seus trajes masculinos, parecia haver adquirido uma coragem varonil. A fiel amizade que Célia demonstrava, acompanhando-a por tantas e tão puxadas léguas, fez com que o novo irmão, em recompensa, a tratasse com a maior solicitude, como se fora na verdade Ganimedes, o rústico e corajoso irmão da gentil aldeã Aliena.
Chegando afinal à floresta de Arden, elas não mais acharam as convenientes estalagens e boas acomodações que haviam encontrado até então. Carecendo de alimento e repouso, Ganimedes, que durante toda a viagem divertira a irmã com ditos e observações felizes, confessou-lhe que se sentia tão exausto que era capaz de trair sua indumentária varonil, pondo-se a gritar como uma mulher. Aliena, por sua vez, declarou que não conseguia ir mais longe. Então Ganimedes tentou de novo compenetrar-se de que o dever do homem é confortar e consolar a mulher, por ser esta a parte mais fraca. E, a fim de aparentar coragem perante a irmã, disse:
Vamos, coragem, minha Aliena! Já estamos no fim de nossa viagem.
Mas de nada servia essa coragem forçada, pois, embora estivessem na floresta de Arden, não sabiam onde encontrar o duque. Ali, a viagem de ambas perigava encontrar um triste fim, pois elas podiam perder-se e morrer de fome. Sentadas na relva, quase mortas de cansaço e desesperadas por socorro, viram passar providencialmente um camponês. Mais uma vez, Ganimedes tentou falar com varonil desembaraço:
Pastor, se o amor ou o dinheiro tem algum préstimo neste ermo, peço-te que nos leves aonde possamos repousar, pois esta jovem, minha irmã, se acha fatigada da viagem e necessita de repouso e alimento.
O homem replicou que era apenas servo de um pastor e que a casa de seu amo estava à venda — por conseguinte, lá achariam apenas um modesto passadio. Mas se quisessem acompanhá-lo, seriam prazerosamente obsequiados com o que havia. Animadas com essa perspectiva, elas seguiram o criado. Compraram a casa e o gado do pastor, tomando a seu serviço o homem que as conduzira. Achando-se assim tão afortunadamente de posse de uma cabana e bem providas de mantimentos, resolveram ali permanecer, até descobrirem em que parte da floresta habitava o duque.
Descansadas afinal da viagem, começaram a gostar da nova vida, já quase se imaginando o pastor e a pastora que fingiam ser. Algumas vezes, porém, Ganimedes recordava ter sido a jovem Rosalinda, que tão profundamente amara ao bravo Orlando, por ser filho do velho sir Rowland, amigo de seu pai. E embora imaginasse que Orlando estava a muitas léguas de distância, pelo menos tantas quantas elas haviam viajado, sucedeu que Orlando também se achava na floresta de Arden. Eis como aconteceu esse estranho acaso.
Ao morrer, sir Rowland confiara Orlando, então muito criança, aos cuidados do filho mais velho Oliver, encarregando-o de dar ao menino uma boa educação e assegurar-lhe uma vida de acordo com a dignidade de sua antiga linhagem. Oliver demonstrou ser um irmão indigno. Sem se importar com as últimas vontades do pai, nunca mandou o menino para a escola, deixando-o em casa, sem instrução alguma e completamente desprezado. Mas, pela índole e nobres qualidades de espírito, tanto se assemelhava Orlando ao falecido pai que, mesmo sem as vantagens de uma boa educação, parecia ter sido criado com o maior desvelo. Logo, Oliver pôs-se a invejar a bela figura e as maneiras distintas de Orlando, a tal ponto que acabou desejando sua morte. Nesse intuito, fizera com que convencessem Orlando a ir bater-se com aquele famoso lutador, que já tantas vidas havia liquidado. E era, por se ver assim desprezado pelo irmão e sem uma única amizade no mundo, que Orlando desejava morrer.
Quando, contrariamente às esperanças que acariciava, o irmão saiu vitorioso da luta, não mais tiveram limites a inveja e a maldade de Oliver, que jurou atear fogo ao quarto de Orlando. Tal ameaça foi ouvida por um ancião, que fora leal servidor de sir Rowland e que muito estimava Orlando, por sua semelhança com o pai. O bondoso velho saiu ao encontro de Orlando, quando este regressava do palácio do duque. Assim que o avistou, a lembrança das ameaças fê-lo prorromper em arrebatadas exclamações:
Ó gentil senhor! Meu bom senhor, retrato de sir Rowland! Por que sois tão virtuoso? Por que sois tão amável, forte, valente? Por que procurastes vencer o famoso lutador? Vossa fama voltou muito antes de vós!
Espantado com o que ouvia, Orlando perguntou o que significava aquilo. Contou-lhe, então, o velho que seu perverso irmão, sabedor da fama que ele granjeara com sua vitória no palácio do duque, pretendia assassiná-lo, incendiando-lhe o quarto naquela noite. Aconselhou-o a escapar do perigo, fugindo de imediato. E desconfiando que Orlando não teria dinheiro, Adão (pois era esse o nome do velho) trouxera consigo suas pequenas economias.
Tenho quinhentas coroas que juntei quando a serviço de vosso pai, para o dia em que minhas velhas pernas se tornassem imprestáveis. Tomai-as. Aquele que dá de comer aos corvos há de amparar minha velhice. Aqui está o ouro; é todo vosso. Deixai-me ficar a vosso serviço; embora pareça velho, trabalharei como um jovem para atender às vossas necessidades.
Ó bondoso velho! — exclamou Orlando. — Como em ti se revela a constante dedicação dos velhos tempos! Tu não és como os de agora. Iremos juntos e, antes que se gastem as tuas economias, hei de arranjar um meio para a nossa manutenção.
Juntos, partiram o fiel servo e seu querido amo. Sem saber ao certo seu destino, andaram até chegar à floresta de Arden. Ali, como Ganimedes e Aliena, também se viram sem nada que comer. Puseram-se a andar em busca de alguma habitação, até ficarem quase mortos de fome e de cansaço. Afinal, Adão disse:
Meu caro amo, vou morrer de fome. Não posso ir adiante.
Despedindo-se de seu querido amo, estendeu-se no chão, pensando fazer daquele lugar sua sepultura. Ao vê-lo naquele estado, Orlando tomou o velho servo nos braços e carregou-o para debaixo de umas árvores.
Coragem, velho Adão. Descansa aqui tuas pernas cansadas e não fales em morrer!
Saiu então em busca de algum alimento e aconteceu-lhe chegar à parte da floresta em que se encontrava o duque. Sentado sobre a relva, tendo por dossel a copa de algumas grandes árvores, o duque e seus amigos preparavam-se justamente para jantar.
Orlando, a quem a fome levara ao desespero, desembainhou a espada, na intenção de tomar a comida a força.
Alto! — gritou ele. — Ninguém coma! Quero isso para mim!
O duque perguntou-lhe então se a miséria é que o tornava assim, ou se era seu costume desprezar as boas maneiras. Orlando respondeu que estava quase morrendo de fome. Então, o duque deu-lhe as boas-vindas e convidou-o a se sentar para compartilhar da refeição. Ouvindo-o falar tão amavelmente, Orlando corou de vergonha:
Perdoai-me — disse ele —, pensei que tudo aqui fosse selvagem e, por isso, assumi uma atitude brutal. Mas, quem quer que sejais vós que, neste deserto, à sombra de melancólicas árvores, perdeis e desprezais as arrastadas horas; se alguma vez tivestes melhores dias, se já estivestes onde os sinos chamam para a igreja, se já sentastes à mesa de algum bom homem; se já enxugastes uma lágrima e sabeis o que é ter ou inspirar compaixão, possam agora amáveis palavras mover-vos a humana cortesia para comigo!
É verdade — replicou o duque — que já conhecemos dias melhores. Embora tenhamos por moradia esta floresta selvagem, já habitamos em cidades, os sagrados sinos nos chamaram à igreja, participamos dos festins de excelentes homens e enxugamos as lágrimas que a santa piedade engendra. Portanto, sentai-vos e servi-vos à vontade de nossa mesa.
Está comigo um pobre velho, que me seguiu por pura amizade e que se acha ao mesmo tempo prostrado por dois tristes males: a idade e a fome. Até que ele se sacie, não devo tocar em coisa alguma.
Ide buscá-lo e trazei-o para cá. Em nada tocaremos até vosso regresso.
Orlando correu então como uma corça em procura da cria para lhe dar alimento. Dali a pouco, voltou, trazendo Adão nos braços!
Pousai vosso venerável fardo — disse o duque. — Sede ambos bem-vindos!
E alimentaram o velho e reanimaram-lhe o coração, trazendo-lhe de volta a saúde e as forças.
O duque indagou quem era Orlando e, quando soube que se tratava do filho de seu velho amigo sir Rowland de Boys, tomou-o sob sua proteção. Assim, Orlando e o velho criado ficaram a morar com o duque na floresta.
A chegada do jovem à floresta aconteceu apenas uns poucos dias depois de Ganimedes e Aliena terem comprado a cabana do pastor.
Agora, Ganimedes e Aliena andavam estranhamente surpresos por encontrarem o nome de Rosalinda gravado nas árvores e sonetos de amor pregados nelas, todos dedicados a Rosalinda. Esforçavam-se por descobrir como podia ser aquilo, quando encontraram Orlando e perceberam-lhe, no pescoço, o colar que Rosalinda lhe dera.
Orlando nem de longe imaginava que Ganimedes fosse a bela princesa Rosalinda, a mesma que, por sua nobre gentileza e bondade, tão fundo lhe tocara o coração que agora ele passava o tempo a gravar o nome dela nas árvores e a escrever sonetos em louvor de sua beleza. Mas, cativado pelo gracioso ar do belo pastorzinho, acabou iniciando uma conversa com ele, achando-o até parecido com sua amada Rosalinda, embora nas maneiras e no porte nada tivesse ele da nobre dama. Ganimedes adotava os modos livres que muitas vezes se veem em jovens, quando estão entre rapazes e homens e, com muita malícia e humor, falava a Orlando de certo namorado “que — dizia ele — frequenta nossa floresta e estraga as árvores, gravando nelas o nome Rosalinda e que pendura odes nos espinheiros e elegias nas macegas, tudo em louvor dessa mesma Rosalinda. Ah, se eu pudesse achar o tal namorado, lhe daria uns bons conselhos para curá-lo desse amor”.
Orlando confessou ser ele o referido namorado e pediu a Ganimedes o bom conselho de que falara. O remédio que Ganimedes propôs foi que Orlando aparecesse todos os dias na cabana onde moravam ele e a sua irmã Aliena.
Então, fingirei que sou Rosalinda e tu fingirás cortejar-me da mesma maneira como farias se eu fosse Rosalinda. Depois, imitarei as divertidas momices das damas para com seus namorados, até que te envergonhes do teu amor. Este é o modo pelo qual pretendo curar-te.
Orlando não tinha grande fé no remédio, mas concordou em ir todos os dias à cabana de Ganimedes e fingir um falso namoro. Chamava ao pastor de Rosalinda e o cumulava com as palavras bonitas e as lisonjas que os jovens costumam usar ao cortejar suas damas. Não parecia, contudo, que Ganimedes fizesse qualquer progresso na sua cura do amor de Orlando por Rosalinda.
Embora Orlando julgasse tudo aquilo simples brincadeira (pois nem sonhava que Ganimedes fosse a verdadeira Rosalinda), a oportunidade de dizer todas as ternas coisas que tinha no coração agradava à sua fantasia. Agradava igualmente a Ganimedes, que gozava a secreta alegria de saber que aquelas lindas palavras de amor estavam sendo dirigidas à pessoa adequada.
Dessa maneira, muitos dias alegremente se passaram. A boa Aliena, vendo que aquilo fazia Ganimedes feliz, deixou-o prosseguir e divertia-se com a fingida corte, sem se importar de lembrar a Ganimedes que Rosalinda ainda não se dera a conhecer ao duque seu pai, cujo paradeiro na floresta haviam sabido por Orlando.
Ganimedes encontrou-se um dia com o duque e com ele trocou algumas palavras. Perguntou-lhe o duque de que família era, e Ganimedes respondeu que provinha de tão boa família quanto ele, o que fez o duque sorrir, pois não suspeitava que o lindo pastorzinho fosse de linhagem real. Vendo o duque assim bem-disposto e feliz, Ganimedes resolveu adiar os esclarecimentos para mais tarde.
Certa manhã, ia Orlando em visita a Ganimedes, quando viu um homem adormecido na relva, com uma grande cobra-verde enroscada ao pescoço. A cobra, diante da aproximação de Orlando, deslizou por entre as moitas. Aproximando-se, Orlando descobriu uma leoa agachada, com a cabeça rente ao chão, como um gato em tocaia, esperando que o homem despertasse — dizem que os leões não apanham caça que esteja morta ou adormecida. Dir-se-ia que Orlando fora enviado pela Providência para livrar o homem do perigo da serpente e da leoa. Mas, quando olhou para a face do homem, Orlando viu que quem estava exposto àquele duplo perigo era seu irmão Oliver, aquele que tão cruelmente o tratara e até planejara fazê-lo morrer queimado. Sentiu-se tentado a deixá-lo como presa à leoa faminta, mas a afeição fraternal e a bondade de sua natureza acabaram triunfando ao ódio. Sacando da espada, ele atacou a leoa e matou-a, salvando assim o irmão, tanto da venenosa cobra quanto da terrível fera. Mas, antes que Orlando pudesse abater a leoa, esta lhe dilacerara um braço com as garras aguçadas.
Enquanto Orlando estava a se bater com a leoa, Oliver despertara. E vendo que o irmão, com quem fora tão cruel, o salvava da fúria de uma fera selvagem, com risco da própria vida, encheu-se de vergonha e remorso, arrependendo-se de seu indigno procedimento. Banhado em lágrimas, pediu ao irmão que lhe perdoasse o mal que lhe fizera. Orlando alegrou-se ao vê-lo assim arrependido e logo o perdoou. Abraçaram-se um ao outro, e desde então Oliver dedicou a Orlando uma fraternal amizade, embora tivesse ido à floresta disposto a matá-lo.
O ferimento que Orlando recebera no braço o fez perder muito sangue, deixando-o em tal estado de fraqueza que lhe era impossível visitar Ganimedes. Assim, pediu ao irmão que fosse contar a Ganimedes (“a quem eu, por troça — explicou ele — chamo de Rosalinda”) o acidente que lhe sucedera.
Imediatamente, Oliver foi relatar a Ganimedes e Aliena o modo como Orlando lhe salvara a vida. Ao terminar a história, confessou ser irmão de Orlando, com quem tinha sido tão cruel, e narrou-lhes sua reconciliação.
O sincero pesar que Oliver demonstrava por seu passado calou tão profundamente no bondoso coração de Aliena que ela no mesmo instante começou a amá-lo. E Oliver, notando o quanto ela se compadecia ao vê-lo tão arrependido, sentiu-se tomado de um súbito amor pela jovem. Mas, enquanto o amor assim se apossava dos corações de Aliena e Oliver, não tinha menos trabalho com Ganimedes, que, ao saber do perigo em que Orlando estivera e que fora ferido pela leoa, logo perdeu os sentidos. Quando voltou a si, declarou que o desmaio fora fingido, apenas para mostrar o que faria Rosalinda no caso.
Vá contar a Orlando como eu soube fingir um desmaio — disse a Oliver.
Mas Oliver viu, por sua palidez, que ele realmente desmaiara e, espantado com a fraqueza do jovem, desafiou-o:
Bem, se tu sabes fingir tão bem, cria coragem e finge-te de homem.
Assim faço — replicou Ganimedes com toda a sinceridade —, mas minha natureza parece que é de mulher.
Oliver prolongou bastante aquela visita e, quando afinal voltou para junto do irmão, tinha muito o que lhe contar. Além de narrar o desmaio de Ganimedes ao saber que Orlando fora ferido, Oliver confessou que se apaixonara pela linda pastorinha Aliena e que esta prestara favorável ouvido à sua corte, logo na primeira entrevista. Declarou, como coisa decidida, que desposaria Aliena, a quem tanto amava, e que viveria ali, como pastor, deixando suas terras e sua casa aos cuidados de Orlando.
Concordo — disse Orlando. — Marca teu casamento para amanhã, que convidarei o duque e seus amigos. Vai persuadir tua pastora. Aproveita que ela agora está sozinha. Olha, aí vem o irmão dela.
Oliver foi ter com Aliena, e Ganimedes, que Orlando vira aproximar-se, veio indagar da saúde do amigo ferido.
Quando Orlando e Ganimedes começaram a falar do súbito amor que se manifestara entre Oliver e Aliena, Orlando contou que aconselhara o irmão a persuadir sua pastora a se casar no dia seguinte. E acrescentou que muito desejaria casar no mesmo dia com Rosalinda.
Ganimedes, que aprovava esse projeto, declarou que, se Orlando realmente amava Rosalinda como dizia, veria seu desejo satisfeito; pois ele, Ganimedes, se comprometia a fazer com que Rosalinda aparecesse em pessoa no dia seguinte e, mais ainda, disposta a desposá-lo.
Para realizar este aparente milagre, Ganimedes alegou que usaria o auxílio das artes mágicas aprendidas com o tio, um famoso feiticeiro.
O apaixonado Orlando, meio crente, meio duvidoso do que ouvia, perguntou se Ganimedes falava sério.
Por minha vida, que sim! — asseverou Ganimedes.
Veste, pois, tuas melhores roupas e convida o duque e seus amigos para as tuas bodas. Se desejas casar com Rosalinda amanhã, ela aqui estará.
Na manhã seguinte, Aliena, Oliver e Orlando compareceram diante do duque.
Estavam todos reunidos para celebrar o duplo casamento, e, como faltava uma das noivas, mostravam-se surpresos e intrigados — a maioria pensando que Ganimedes apenas troçava de Orlando.
O duque, sabendo que era sua própria filha que seria trazida daquela maneira, perguntou a Orlando se o pastorzinho podia realmente cumprir o prometido. Enquanto Orlando respondia que não sabia o que pensar, Ganimedes chegou e perguntou ao duque se, trazida a filha à sua presença, consentiria ele no seu casamento com Orlando.
Sim — respondeu o duque —, mesmo que eu tivesse reinos para lhe dar.
Ganimedes perguntou então a Orlando:
E tu, casarás com ela se eu a trouxer aqui?
Sim — respondeu Orlando —, ainda que eu fosse rei de muitos reinos.
Saindo então junto com Aliena, Ganimedes despiu as roupas de homem e envergou de novo as vestes femininas, logo se transformando em Rosalinda, sem o auxílio de qualquer magia. Também Aliena trocou a indumentária de camponesa por sua rica roupa e viu-se, com pouco trabalho, transformada na nobre Célia.
Durante a ausência de ambas, o duque comentou com Orlando que achava o pastor Ganimedes muito parecido com sua filha Rosalinda. Também Orlando disse que notara a semelhança.
Não tiveram tempo de especular em que iria dar tudo aquilo, pois Rosalinda e Célia logo chegaram com suas verdadeiras roupas. Sem mais pretender que estava ali por artes mágicas, Rosalinda ajoelhou-se diante do pai e pediu-lhe a bênção. Aquela súbita aparição revelou-se tão maravilhosa a todos os presentes que bem podia passar por magia, mas Rosalinda não quis iludir o pai e contou-lhe a história de seu banimento e da vida que levara como pastor, na companhia de Célia, sua pretensa irmã.
O duque reafirmou o consentimento que já havia dado; e Orlando e Rosalinda, Oliver e Célia casaram-se ao mesmo tempo. Embora os casamentos não pudessem ser celebrados naquela bravia floresta com o esplendor e a pompa de costume, nunca um dia de bodas transcorreu com maior felicidade e alegria. Enquanto comiam a caça à sombra fresca das árvores, eis que, como se nada pudesse faltar para a felicidade do duque e dos noivos, chegou um inesperado mensageiro para dar ao duque a boa-nova de que seu ducado lhe fora restituído.
Furioso com a fuga de sua filha Célia e sabendo que diariamente homens de grande mérito iam para a floresta juntar-se ao duque legítimo, o usurpador sentira inveja de ver o irmão tão respeitado na adversidade e pusera-se à frente de uma grande força, avançando em direção à floresta, no intuito de derrotar nas armas o duque e seus partidários.
Por maravilhosa intervenção da Providência, porém, foi esse mau irmão desviado dos seus propósitos. Exatamente ao chegar à orla da floresta, encontrou-se ele com um velho eremita, com quem falou longamente e que acabou por lhe desviar o coração dos seus perversos desígnios. A partir desse momento, tornou-se um verdadeiro penitente e resolveu, abrindo mão de seu injusto domínio, passar o resto dos dias num convento. O primeiro resultado prático desse arrependimento foi mandar um mensageiro ao irmão, oferecendo-lhe a devolução de seu ducado, bem como das terras e rendimentos dos seus amigos, fiéis companheiros de infortúnio.
Essa alegre nova, tão imprevista quanto bem recebida, chegou precisamente a tempo de intensificar a animação e regozijo dos festejos de casamento. Célia cumprimentou a prima pela sorte do duque, pai de Rosalinda, congratulando-se sinceramente com esta, embora ela própria não fosse mais a herdeira do ducado, mas sim, Rosalinda — tão perfeita era a amizade que unia a ambas, completamente isenta de qualquer inveja ou despeito.
O duque agora tinha oportunidade de recompensar os fiéis amigos que com ele haviam permanecido no desterro. E esses dignos vassalos, embora houvessem partilhado pacientemente da sua adversa fortuna, muito se regozijaram por assim voltarem, felizes e prósperos, ao palácio de seu legítimo senhor.

William Shakespeare, in Contos de Shakespeare

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