sábado, 24 de junho de 2023

Em paz

Parece que envelheço em semanas, não em horas. Os dias passam rápido nesse marasmo em que o calendário perdeu todo o sentido. O porteiro me cumprimentou com quatro dentes a mais nessa manhã, entregou a correspondência em mãos. Então soube que estávamos em dezembro, o livro de ouro aberto na mesa da portaria, ao lado da central de interfone. Ignorei. Retribuí apenas com o obrigado habitual, bom-dia. “Fique com Deus, seu Natan”, ele fez questão de falar. Cada vez que ouço Deus saltar da boca de uma pessoa que não parou para pensar na existência Dele por mais de cinco minutos na vida, fico irritado. Hoje em dia Deus e Jesus são sinônimos, e é impossível pagar um táxi, dar uma esmola, ou se despedir da faxineira sem que uma dessas entidades abstratas invada seus ouvidos. Dizem Deus, Jesus, como poderiam dizer Meu Amo, Senhor, Alah, Adonai. Falam Deus o abençoe e acreditam que têm esse poder, evocar a piedade de um ser supremo para uma pessoa que lhe fez um pequeno favor.
Ana era religiosa, ainda mais depois da doença, das doenças, e combati esse fanatismo silenciosamente dentro da minha própria casa durante nossos 46 anos de casamento. Antes, sempre, judia, no final, inexplicavelmente, católica. Na mesma frase em que me contou que estava com câncer nos pulmões acrescentou que Deus sabia o que estava fazendo, e aquilo me irritou tanto que, em vez de confortá-la, gritei para ela esquecer aquela merda de Deus.
Esperei que ela chorasse, respondesse, mas. Nada. Os olhos se diluindo em piedade, as lágrimas represadas não desceram, e ela ergueu a cabeça, segurou minhas mãos e me pediu calma. Calma, pensei, mas você tem câncer! Continuou, como se tivesse me ouvido:
Eu estou em paz. Nunca me senti tão em paz, Natan.”
E nos olhos negros dela, absurdamente brilhantes com aquela poça d’água que não desabava, eu via que ela estava mesmo em paz, calma, obscenamente calma. Mas Ana não estava apenas com câncer, estava esquecida, e aquela felicidade imunda que ela encenava só me apontava que, quando o câncer chegou, Ana já não era ela mesma. Ela me puxou para um abraço e finalmente chorei, por nós dois. Ana me reconfortou, puxando minha cabeça para o seu ombro, a mão espalmada na minha nuca:
Ficaremos bem.”

Flávio Izhaki, in Amanhã não tem ninguém

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