Adote
uma palavra antes que ela desapareça. Esta é a proposta de um site
encantador, criado pelo Oxford English Dictionary. Você abre o site
e há uma tela cheia de palavras carentes. Elas saltitam, se exibem,
dão piruetas, na tentativa de chamar sua atenção. Basta passar o
mouse em qualquer uma e ela começa a gritar: “Me escolha!”
ou “Sim! Sim! Eu!” ou “Olá!” ou “Aqui!”. Se você
clicar, aparece o significado e a ficha de adoção. E sugestões de
como usá-la em diferentes contextos. Você elege sua pequena órfã
e se compromete a levá-la para passear na vizinhança, enturmá-la
no cotidiano. Nas conversas de bar, nos bilhetes e nos e-mails, nos
pedidos de informação e até nas brigas e nas declarações de
amor. A utopia contida na criação do site é que, se cada uma
destas palavras zumbis voltarem literalmente à boca do povo, elas
serão de novo letra viva.
Pena
que é em inglês. Espero que o Houaiss ou o Aurélio ou qualquer
outro dicionário ou universidade ou pessoa faça um site igualzinho
com a zumbilândia do nosso português. Enquanto isso não acontece,
podemos fazer a nossa parte para que o dicionário da língua
portuguesa no Brasil não se torne um livro de óbitos.
Por
que uma palavra morre? Como as pessoas, por várias razões. Larápio,
por exemplo. Para quem já esqueceu, é um sinônimo de ladrão. Foi
usado bastante no passado, inclusive pela imprensa. Hoje, está
relegado ao arcaísmo. Acabaram-se os larápios? Como sabemos, muito
antes pelo contrário. Mas talvez tenha acabado um certo jeito de
olhar para aquele que furta ou é desonesto de outras maneiras — e
a palavra larápio não deu mais conta de todas as variações de
meliantes (outra!) que surgiram. Ou ainda, foi considerada emproada
demais para os novos tempos. Agonizou por esvaziamento de sentido. E
outras palavras precisaram nascer para atender às novas
necessidades.
Quando
uma palavra morre é um mundo inteiro que morre com ela. Quando uma
palavra da língua portuguesa falada no Brasil desaparece, é um
jeito de ser brasileiro que desaparece com ela. Um jeito de ser e de
estar, de sentir a realidade, de olhar para os sentimentos e para o
outro. E outras formas de ser e de estar surgem ou se impõem com
palavras recém-nascidas. Como tudo que é vivo, a língua muda. E
quanto mais se transforma, agrega sinônimos e gírias, mais rica é
a língua e também a cultura que ela expressa.
Como
amo as palavras, adoro vê-las nascer e sofro quando morrem. Tenho
esta nostalgia de mundos. Mas sofro menos pelas que foram aposentadas
porque perderam sentido — e mais pelas invisíveis. Arrisco dizer
que há um número maior de palavras invisíveis do que de palavras
arcaicas. No esforço de simplificar a linguagem para que o leitor
possa compreender o texto, por exemplo, abandonamos uma população
de palavras mais intrincadas. Como todas as escolhas, esta também
não ficou impune. Simplificar, neste caso, pode ter significado
reduzir. E, junto com o número de palavras, também nós nos
apequenamos.
O
vocabulário também nos confina. Quando é limitado, é nosso mundo
que se torna emparedado. Tente se imaginar sem palavras. Ou melhor:
tente ser sem palavras. É impossível. Pensamos, sentimos, amamos,
desejamos, brigamos, sonhamos, existimos — com palavras. Sempre com
palavras. Onde estamos? Não em São Paulo, Porto Alegre, Rio,
Brasília, Macapá, Recife, Paris, Miami, Pindamonhangaba ou Anta
Gorda. Estamos nas palavras. Habitamos as palavras. Somos palavras.
Quando estamos e somos nas mesmas poucas palavras, somos e estamos
menos. É como ter a chance de viajar pelas galáxias e preferir se
fechar numa quitinete.
Em
minhas andanças de repórter pelos muitos Brasis, entrei em contato
com algumas construções de linguagem e invenções de palavras que
ampliaram minha capacidade de perceber a realidade. Vinham de
analfabetos que faziam literatura pela boca. Como os Raimundos da
Terra do Meio, no Pará, ou os habitantes dos muitos sertões do
Nordeste. Ou as “pegadoras de meninos” da floresta amazônica, no
Amapá, que enquanto aparavam bebês pariam palavras. Como Nazira
Narciso, ao me explicar que fez o parto da neta porque a parteira
mais experiente havia se recusado por ser “barriga particular”.
Ahn? “Não tem marido”, cochichou ela. Ou a caripuna Dorica, de
96 anos, me explicando o ofício: “Parteira não tem escolha, é
chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo”.
Todos
“cegos das letras”, como diziam, mas donos de um vocabulário tão
rico como a vida. Recriavam-se nas palavras como os grandes
inventores da língua escrita, autores do cânone como Guimarães
Rosa e Manoel de Barros. Porque o vocabulário é pobre quando a vida
é pobre. Não materialmente, mas de experiências.
Não
dá para saber o que veio antes, se a vida ou a palavra. Vivemos com
um vocabulário medíocre porque a vida é medíocre? Ou a vida é
medíocre porque o vocabulário é medíocre? O que se perde quando
usamos as mesmas palavras para um mundo tão diverso é que deixamos
de enxergar o mundo em toda a sua largueza. Ele está lá, mas não
conseguimos nomeá-lo. Então, ele está — mas não para nós. É
uma maneira de ser cego, surdo e mudo com todos os sentidos
funcionando.
A
rigor, não existem sinônimos perfeitos, uma palavra que tenha
exatamente o mesmo significado que outra. Há palavras que expressam
quase o mesmo que uma outra. Mas o quase, na língua como na vida,
faz toda a diferença. “Cão” e “cachorro”, por exemplo.
Parece o mesmo. Mas não é. O cão contém um distanciamento, uma
frieza, que o cachorro não tem. Ou o cachorro expressa uma
proximidade, contida na própria sonoridade da palavra, mais
comprida, musical e leve, que o cão jamais alcançará na sua dureza
de uma sílaba só. Quando tomamos tudo pelo mesmo, perdemos as
nuances. Abrimos mão da graça.
Acredito
que a resistência da palavra se dá na arte. Especialmente na música
e na literatura — seja ela oral ou escrita. E o empobrecimento da
língua às vezes acontece nos meios de comunicação de massa. Em
programas de TV, por exemplo, que uniformizam a linguagem por
acreditar que, se não o fizessem, não seriam entendidos por todos.
Só que não existe uma linguagem padrão. O que existe é um
vocabulário que se impõe pela hegemonia política e econômica de
um determinado grupo ou classe. No caso de muitos programas de TV que
se pretendem nacionais — e aqui não falo de nenhuma rede
específica, até porque quase todas seguem a mesma cartilha —,
fala-se uma espécie de paulistanês e carioquês “culto”, como
se esta fosse a suposta língua portuguesa do Brasil.
Mas
como, se o Brasil é exatamente a convivência e o diálogo de suas
diferenças, se a riqueza do país e da língua se dá na
diversidade? Seria muito estúpido esperar que uma ribeirinha da
Amazônia usasse as mesmas palavras que um rapper da periferia de São
Paulo. Que rearranjassem as palavras da mesma maneira se vêm de uma
história, de uma geografia e de um estar no mundo tão diverso. Isso
não os torna menos brasileiros ou faz com que pertençam menos à
mesma nação — pelo contrário. Esta diversidade expressa também
na linguagem é talvez a mais forte identidade do Brasil. Mas há que
resistir ao seu apagamento.
Mesmo
na internet, que muitos encaram como a eclosão das singularidades,
duvido um pouco que de fato seja isso que esteja acontecendo. Sem
negar sua fabulosa importância, o que vejo, por enquanto, é a
reprodução de tribos que já existiam. Um diálogo entre iguais que
se fortalecem, o que não é pouco. Mas não um diálogo de
diferentes, que é o que poderia ser mais interessante. Ampliaram-se
as vozes, mas parece que, para além de seus pertencimentos, seguem
surdas umas às outras.
Ao
deixar o Rio Grande do Sul e ir para São Paulo, eu mudei de várias
maneiras. A única que lamento é a mudança que se deu pelas
palavras. Para escrever no que se costuma chamar de imprensa nacional
— mas que é a imprensa paulista e (cada vez menos) carioca —,
abri mão de porções da minha identidade. Em vez de guri e guria,
passei a falar e a escrever menino e menina. Em lugar de tu, você. E
assim por diante.
Mais
do que trocar palavras, o que perdi foi uma paleta de tons e de
cores. Eu era capaz de expressar uma mesma realidade ou sentimento de
várias maneiras, de nomear um animal ou um objeto com diferentes
palavras. Era herdeira de uma língua do interior do extremo sul do
Brasil, cujo vocabulário se enriqueceu tanto pela apropriação
promovida pelos imigrantes europeus quanto pelo legado mais antigo,
deixado junto com seu sangue por índios, espanhóis e portugueses.
Eu
falava um português vivo o suficiente para dar conta de uma
experiência singular. É natural, por exemplo, que no Sul tenhamos
uma variedade maior de expressões para o frio do que no Norte e
Nordeste. Que, por sua vez, terá uma riqueza maior de termos
forjados numa vivência mais solar. Em São Paulo, me pasteurizei.
Mantive a experimentação da língua feita pelos personagens reais
cujas histórias contava, mas minha própria voz ficou mais
padronizada.
Agora
empreendo um caminho de volta, que não é volta porque sou outra.
Voltar é sempre uma impossibilidade. Ainda bem. Resgato o que há de
mim nas palavras esquecidas, mas a partir dessa experiência de uma
década em São Paulo. Escolho ser uma soma dissonante — alargada
por tudo o que vivi. Dentro de mim ecoam as vozes de todos que me
marcaram.
Há
pouco escrevi um “cusco” numa crônica e fiquei muito faceira.
Ah, sim, quando eu cheguei em São Paulo eu era “faceira”, às
vezes até “louca de faceira” e em alguns dias “mais faceira
que terneiro novo” — e não feliz. A vantagem, no meu caso, é
que basta botar o pé na casa da minha infância que tudo volta.
Minha mãe mesmo, professora de português e de literatura e a melhor
doceira do país (na minha isenta opinião), tem um vocabulário
próprio. Há coisas que só ela diz. Ninguém sabe de onde tira. Nem
ela. Essa invenção é parte essencial do que ela é. E nos
proporciona grandes momentos.
Sempre
desejei que um dia alguém me perguntasse qual é a minha palavra
preferida. Eu tenho uma. É uma palavra que me tomou desde a primeira
vez que a li. Eu intuo o seu significado, mas resisto a buscá-la no
dicionário. Às vezes tenho isso, gosto de conhecer por mim mesma
antes que alguém me explique. Posso passar anos apalpando uma
palavra ou um conceito dentro de mim até me decidir a partir em seu
encalço no mundo de fora.
No
caso dessa palavra, era importante que ela guardasse um pouco do seu
mistério, indevassável até para mim que a amava. Queria que ela
ficasse um pouco hermética, já que o amor é sempre misterioso.
Quando a pronuncio dentro de mim, sou possuída por ela. Eu sinto a
palavra, vivo ela — nela. E nunca a escrevi em texto. Não sei se
por ciúmes ou por não achar nenhum contexto à altura. Não é um
arcaísmo nem um regionalismo. É uma palavra da língua “culta”.
Título de um livro de um de meus autores preferidos, um japonês
chamado Junichiro Tanizaki.
Decidi
dar a minha palavra para vocês.
VORAGEM.
Eu
sou essa palavra. E agora, por amor, vou interromper esta coluna para
finalmente procurar o que ela significa no Dicionário Houaiss.
(Dois minutos depois...) Aí está: “1. Tudo aquilo que é
capaz de tragar, sorver, destruir com violência; 2. Redemoinho de
água que se forma no mar ou no rio, cujo giro arrasta as coisas para
o fundo; sorvedouro, turbilhão; 3. Grande profundeza, abismo; 4.
Aquilo que provoca grandes arroubos, que arrebata, mortifica ou
consome”. É tudo isso e ainda o que ela é para mim. Em mim. E o
que pode ser ressignificado a partir de cada um.
Inspirada
pelo site savethewords.org, escrevi esta coluna para lançar a
ideia de usar uma palavra nova a cada dia. Não uma nova para todo
mundo, mas uma nova para cada um. A cada manhã uma palavra inédita,
pescada do oceano fundo e escuro onde elas habitam como peixes
escorregadios. Uma decisão existencial mais profunda do que pode
parecer à primeira palavra.
Eliane Brum, in A Menina Quebrada
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