A
novela O veredicto — ou como Kafka a chama: história
— ocupa na obra do escritor tcheco um lugar decisivo em vários
sentidos. Em primeiro lugar, é esse o texto em que Kafka descobre
sua forma específica de narrar. Do ponto de vista cronológico, é o
texto que introduz a sequência das obras-primas kafkianas. Existe um
consenso de que O veredicto contém a estrutura básica que as
demais narrativas desenvolvem e submetem a pequenas variações. Do
ponto de vista temático, é essa a primeira obra de Kafka em que
aparece não só o motivo recorrente da condenação e da morte, como
também a figura que encarna uma força vital que baixa a pena de
morte ao eu desgarrado ou alienado de si mesmo — no caso, o pai.
O
veredicto é também a obra com que Kafka estabeleceu a ligação
afetiva mais profunda e cujo valor ele reconheceu sem a menor
restrição. Numa anotação dos Diários de 1912, ano em que
ele compôs a novela, Kafka afirma que escreveu O veredicto de
um só fôlego, das dez da noite do dia 22 de setembro às seis horas
do dia 23, dizendo o seguinte: “Só assim se pode escrever, com
essa abertura total do corpo e da alma”. Ao seu editor, Kurt Wolff,
ele escreveu: “O texto é mais um poema do que uma narrativa, por
isso ele precisa de mais espaço para produzir efeito. É o trabalho
de que eu mais gosto, daí que sempre foi meu desejo vê-lo se
possível apresentado de uma maneira autônoma”.
Nenhum
escrito de Kafka apresenta traços autobiográficos tão claros
quanto O veredicto. Nos Diários de 1913 e na Carta ao pai ele
revelou a ancoragem biográfica da novela. Afirma, por exemplo, que
atrás de Georg Bendemann e de Frieda Brandenfeld, a noiva,
escondem-se o próprio Kafka e Felice Bauer, a que foi sua noiva duas
vezes:
“Georg
tem o mesmo número de letras de Franz. Em Bendemann, o mann é
apenas um reforço de Bende, e Bende tem tantas letras quanto Kafka,
sendo que a vogal e repete-se nos mesmos lugares da vogal a em Kafka.
Frieda tem tantas letras quanto Felice e a mesma inicial (F),
Brandenfeld tem a mesma inicial de Bauer e, através da palavra Feld,
também no sentido uma certa relação.” (Bauer = lavrador; Feld =
campo.)
Kafka
havia conhecido Felice Bauer em Praga pouco antes de escrever O
veredicto e nos cinco anos seguintes, como se disse, ficou noivo dela
duas vezes sem se casar. Nos Diários e na Carta ao pai,
Kafka deixa claro que sentia o fracasso dos seus planos de casamento
como fracasso do seu projeto pessoal, e a incapacidade para o amor
como incapacidade para a vida. Ao mesmo tempo ele se sentia, perante
o pai, que dos seus plenos poderes de patriarca condenava as
intenções de casamento do filho, como alguém que tinha dado um
desfalque no banco mas ainda continuava no emprego e tremia de medo
diante da descoberta da falcatrua.
As
analogias entre essas experiências e O veredicto são
reconhecíveis, mas a substância artística propriamente dita da
obra só se manifesta no processo de estranhamento ou de
transfiguração desses dados biográficos.
O
que logo chama a atenção no texto é a crescente deformação da
realidade. Esse recurso expressionista se manifesta na novela assim
que Georg sai do seu quarto e entra no quarto escuro do pai. O
estranhamento consiste aqui na integração do que não é
plausível num acontecimento cotidiano descrito com aparente
naturalidade.
Ou
seja: o início da novela instala o leitor num mundo onde não há
nada que seja incomum. Por meio de um narrador em terceira pessoa, o
leitor fica sabendo que Georg Bendemann passou a manhã escrevendo
uma carta a um amigo de juventude que, havia anos, tinha emigrado
para São Petersburgo. Georg acompanha em pensamento o destino desse
amigo. O que é informado a respeito é compreensível e aceitável.
Surge diante do leitor a imagem de uma pessoa que não se sente bem
nem em casa nem no exterior — a imagem de alguém que, perseguido
pela doença e pelo infortúnio profissional, não conseguiu
estabelecer boas relações com os outros e agora se vê condenado à
solidão de um “celibato definitivo”. As reflexões de Georg
sobre o amigo parecem inspiradas pela lógica e pela consideração
humana. Para não lembrar o amigo do seu insucesso e poupá-lo de
novas decepções, Georg não quer aconselhá-lo a voltar para casa.
Até então ele só havia comunicado ao amigo coisas sem importância,
porque temia que o amigo sentisse a agudez da sua infelicidade —
principalmente diante do sucesso de Georg na vida, no mundo dos
negócios e no plano afetivo-social, uma vez que ele agora está
noivo de uma mulher bem situada.
Se
até aqui o leitor parecia introduzido num mundo fiel às leis
familiares da causalidade e das pequenas complicações da
“psicologia normal”, daí para a frente ele será levado passo a
passo para um labirinto de acontecimentos mais ou menos
impenetráveis, sem que se tenha realmente deixado o espaço da
realidade empírica. A transição ocorre quando o cenário da
primeira parte da novela muda e Georg chega ao quarto do pai cruzando
um corredor.
Na
verdade, o que se percebe aqui é a existência de um chão duplo
— e essa experiência torna-se mais nítida através de um
ajustamento que parece “natural” entre o que já não é
plausível e o nexo causal e o bom senso do relato objetivo.
Esse
estranhamento surge logo no início da segunda parte, com a
observação (em tom neutro) que Georg não entrava fazia meses
no quarto do pai. Mas o espanto aparece quando o pai pergunta ao
filho se ele tem realmente um amigo em Petersburgo. Não é só
a pergunta, mas também a ênfase com que nesse momento o pai exige
do filho toda a verdade, o que de fato causa espanto. Pois é
a partir desse ponto que o volume e o comportamento do pai começam a
ultrapassar as fronteiras do mundo cotidiano. É essa deformação
inesperada que transforma a figura do pai numa figura mítica de
patriarca e juiz supremo. O pai “atravessa” com o olhar a
“desonestidade” do filho e fica “irradiando a mais aguda
perspicácia”.
A
conversa entre os dois personagens, que até aqui era bastante
previsível, vai assumindo a forma implacável de um interrogatório,
no qual o pai exerce o papel do magistrado que baixa a sentença num
discurso que lembra a linguagem bíblica, com a qual Kafka estava
familiarizado. Com o veredicto da culpa e a condenação à morte por
afogamento, a estranheza instaurada na narrativa chega ao auge. E o
mais estranho é que Georg não se rebela contra o pai, aceitando a
condenação com o máximo de energia — a ponto de executar a pena
no próprio corpo, momento em que confessa o seu amor aos
pais.
“Nesse
momento o trânsito sobre a ponte era praticamente interminável” —
assim termina a novela. O mistério não podia ser mais completo e
imprevisível. Só um mestre da suspeita como Freud poderia
desvendá-lo. Aliás, Kafka confirma nos Diários que nessa
época estava estudando psicanálise.
Desde
o início da novela o leitor tem acesso aos pensamentos de Georg e
sabe o que neles se passa. Os recursos da autorreflexão são
acionados apenas em nome de Georg, do mesmo modo que o discurso
indireto. Sendo assim, o leitor acompanha os acontecimentos a partir
da perspectiva de Georg, embora este nunca se postule como narrador,
pois aqui se trata de uma narrativa em terceira pessoa. Mas o ponto
de vista e a matéria narrada estão implantados na consciência de
Georg. Desse modo o leitor fica ao mesmo tempo dentro e fora
do que é narrado, ou seja, tanto como participante quanto como
observador distanciado. A experiência e os movimentos subjetivos do
protagonista se manifestam sem que o narrador intervenha com as suas
próprias reflexões.
A
pessoa propriamente dita da novela é Georg, pois só ele tem
o emblema reconhecido da personalidade. Assim é que ela está
gravada no seu nome, por meio do qual ele é identificado e
interpelado. Mesmo a noiva, Frieda Brandenfeld, é apenas um
personagem referido, permanecendo tópica — tópica e típica, como
também o são o pai, o amigo e a mãe. Todos esses coadjuvantes
constituem, por assim dizer, o mundo de fora. Eles dependem de
Georg e na verdade só se relacionam com ele.
Segundo
o próprio Kafka, o pai é um componente interno de Georg, da mesma
maneira que o amigo é o campo de batalha entre o herói e a imago
paterna.
O
acontecimento interior só é comunicável porque o narrador em
terceira pessoa se incumbe de objetivá-lo, transformando esse
acontecimento em figuras. Como disse Kafka, “eu não estava
preocupado em mostrar seres humanos, apenas contei uma história. São
imagens, só imagens”.
Modesto Carone, in Lição de Kafka
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