quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

O veredicto

A novela O veredicto — ou como Kafka a chama: história — ocupa na obra do escritor tcheco um lugar decisivo em vários sentidos. Em primeiro lugar, é esse o texto em que Kafka descobre sua forma específica de narrar. Do ponto de vista cronológico, é o texto que introduz a sequência das obras-primas kafkianas. Existe um consenso de que O veredicto contém a estrutura básica que as demais narrativas desenvolvem e submetem a pequenas variações. Do ponto de vista temático, é essa a primeira obra de Kafka em que aparece não só o motivo recorrente da condenação e da morte, como também a figura que encarna uma força vital que baixa a pena de morte ao eu desgarrado ou alienado de si mesmo — no caso, o pai.
O veredicto é também a obra com que Kafka estabeleceu a ligação afetiva mais profunda e cujo valor ele reconheceu sem a menor restrição. Numa anotação dos Diários de 1912, ano em que ele compôs a novela, Kafka afirma que escreveu O veredicto de um só fôlego, das dez da noite do dia 22 de setembro às seis horas do dia 23, dizendo o seguinte: “Só assim se pode escrever, com essa abertura total do corpo e da alma”. Ao seu editor, Kurt Wolff, ele escreveu: “O texto é mais um poema do que uma narrativa, por isso ele precisa de mais espaço para produzir efeito. É o trabalho de que eu mais gosto, daí que sempre foi meu desejo vê-lo se possível apresentado de uma maneira autônoma”.
Nenhum escrito de Kafka apresenta traços autobiográficos tão claros quanto O veredicto. Nos Diários de 1913 e na Carta ao pai ele revelou a ancoragem biográfica da novela. Afirma, por exemplo, que atrás de Georg Bendemann e de Frieda Brandenfeld, a noiva, escondem-se o próprio Kafka e Felice Bauer, a que foi sua noiva duas vezes:
Georg tem o mesmo número de letras de Franz. Em Bendemann, o mann é apenas um reforço de Bende, e Bende tem tantas letras quanto Kafka, sendo que a vogal e repete-se nos mesmos lugares da vogal a em Kafka. Frieda tem tantas letras quanto Felice e a mesma inicial (F), Brandenfeld tem a mesma inicial de Bauer e, através da palavra Feld, também no sentido uma certa relação.” (Bauer = lavrador; Feld = campo.)
Kafka havia conhecido Felice Bauer em Praga pouco antes de escrever O veredicto e nos cinco anos seguintes, como se disse, ficou noivo dela duas vezes sem se casar. Nos Diários e na Carta ao pai, Kafka deixa claro que sentia o fracasso dos seus planos de casamento como fracasso do seu projeto pessoal, e a incapacidade para o amor como incapacidade para a vida. Ao mesmo tempo ele se sentia, perante o pai, que dos seus plenos poderes de patriarca condenava as intenções de casamento do filho, como alguém que tinha dado um desfalque no banco mas ainda continuava no emprego e tremia de medo diante da descoberta da falcatrua.
As analogias entre essas experiências e O veredicto são reconhecíveis, mas a substância artística propriamente dita da obra só se manifesta no processo de estranhamento ou de transfiguração desses dados biográficos.
O que logo chama a atenção no texto é a crescente deformação da realidade. Esse recurso expressionista se manifesta na novela assim que Georg sai do seu quarto e entra no quarto escuro do pai. O estranhamento consiste aqui na integração do que não é plausível num acontecimento cotidiano descrito com aparente naturalidade.
Ou seja: o início da novela instala o leitor num mundo onde não há nada que seja incomum. Por meio de um narrador em terceira pessoa, o leitor fica sabendo que Georg Bendemann passou a manhã escrevendo uma carta a um amigo de juventude que, havia anos, tinha emigrado para São Petersburgo. Georg acompanha em pensamento o destino desse amigo. O que é informado a respeito é compreensível e aceitável. Surge diante do leitor a imagem de uma pessoa que não se sente bem nem em casa nem no exterior — a imagem de alguém que, perseguido pela doença e pelo infortúnio profissional, não conseguiu estabelecer boas relações com os outros e agora se vê condenado à solidão de um “celibato definitivo”. As reflexões de Georg sobre o amigo parecem inspiradas pela lógica e pela consideração humana. Para não lembrar o amigo do seu insucesso e poupá-lo de novas decepções, Georg não quer aconselhá-lo a voltar para casa. Até então ele só havia comunicado ao amigo coisas sem importância, porque temia que o amigo sentisse a agudez da sua infelicidade — principalmente diante do sucesso de Georg na vida, no mundo dos negócios e no plano afetivo-social, uma vez que ele agora está noivo de uma mulher bem situada.
Se até aqui o leitor parecia introduzido num mundo fiel às leis familiares da causalidade e das pequenas complicações da “psicologia normal”, daí para a frente ele será levado passo a passo para um labirinto de acontecimentos mais ou menos impenetráveis, sem que se tenha realmente deixado o espaço da realidade empírica. A transição ocorre quando o cenário da primeira parte da novela muda e Georg chega ao quarto do pai cruzando um corredor.
Na verdade, o que se percebe aqui é a existência de um chão duplo — e essa experiência torna-se mais nítida através de um ajustamento que parece “natural” entre o que já não é plausível e o nexo causal e o bom senso do relato objetivo.
Esse estranhamento surge logo no início da segunda parte, com a observação (em tom neutro) que Georg não entrava fazia meses no quarto do pai. Mas o espanto aparece quando o pai pergunta ao filho se ele tem realmente um amigo em Petersburgo. Não é só a pergunta, mas também a ênfase com que nesse momento o pai exige do filho toda a verdade, o que de fato causa espanto. Pois é a partir desse ponto que o volume e o comportamento do pai começam a ultrapassar as fronteiras do mundo cotidiano. É essa deformação inesperada que transforma a figura do pai numa figura mítica de patriarca e juiz supremo. O pai “atravessa” com o olhar a “desonestidade” do filho e fica “irradiando a mais aguda perspicácia”.
A conversa entre os dois personagens, que até aqui era bastante previsível, vai assumindo a forma implacável de um interrogatório, no qual o pai exerce o papel do magistrado que baixa a sentença num discurso que lembra a linguagem bíblica, com a qual Kafka estava familiarizado. Com o veredicto da culpa e a condenação à morte por afogamento, a estranheza instaurada na narrativa chega ao auge. E o mais estranho é que Georg não se rebela contra o pai, aceitando a condenação com o máximo de energia — a ponto de executar a pena no próprio corpo, momento em que confessa o seu amor aos pais.
Nesse momento o trânsito sobre a ponte era praticamente interminável” — assim termina a novela. O mistério não podia ser mais completo e imprevisível. Só um mestre da suspeita como Freud poderia desvendá-lo. Aliás, Kafka confirma nos Diários que nessa época estava estudando psicanálise.

Desde o início da novela o leitor tem acesso aos pensamentos de Georg e sabe o que neles se passa. Os recursos da autorreflexão são acionados apenas em nome de Georg, do mesmo modo que o discurso indireto. Sendo assim, o leitor acompanha os acontecimentos a partir da perspectiva de Georg, embora este nunca se postule como narrador, pois aqui se trata de uma narrativa em terceira pessoa. Mas o ponto de vista e a matéria narrada estão implantados na consciência de Georg. Desse modo o leitor fica ao mesmo tempo dentro e fora do que é narrado, ou seja, tanto como participante quanto como observador distanciado. A experiência e os movimentos subjetivos do protagonista se manifestam sem que o narrador intervenha com as suas próprias reflexões.
A pessoa propriamente dita da novela é Georg, pois só ele tem o emblema reconhecido da personalidade. Assim é que ela está gravada no seu nome, por meio do qual ele é identificado e interpelado. Mesmo a noiva, Frieda Brandenfeld, é apenas um personagem referido, permanecendo tópica — tópica e típica, como também o são o pai, o amigo e a mãe. Todos esses coadjuvantes constituem, por assim dizer, o mundo de fora. Eles dependem de Georg e na verdade só se relacionam com ele.
Segundo o próprio Kafka, o pai é um componente interno de Georg, da mesma maneira que o amigo é o campo de batalha entre o herói e a imago paterna.
O acontecimento interior só é comunicável porque o narrador em terceira pessoa se incumbe de objetivá-lo, transformando esse acontecimento em figuras. Como disse Kafka, “eu não estava preocupado em mostrar seres humanos, apenas contei uma história. São imagens, só imagens”.

Modesto Carone, in Lição de Kafka

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