Sísifo (1549), de Tiziano
Os
deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessantemente
até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu
próprio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões, que não
existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem
esperança.
Se
acreditarmos em Homero, Sísifo era o mais sábio e mais prudente dos
mortais. Segundo uma outra tradição, porém, ele tinha queda para o
ofício de salteador. Não vejo aí contradição. Diferem as
opiniões sobre os motivos que lhe valeram ser o trabalhador inútil
dos infernos. Reprovam-lhe, antes de tudo, certa leviandade para com
os deuses. Espalhou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi
raptada por Júpiter. O pai, abalado por esse desaparecimento, se
queixou a Sísifo. Este, que tomara conhecimento do rapto, ofereceu a
Asopo orientá-lo a respeito, com a condição de que fornecesse água
à cidadela de Corinto. Às cóleras celestes ele preferiu a bênção
da água. Foi punido por isso nos infernos. Homero nos conta ainda
que Sísifo acorrentara a Morte. Plutão não pôde tolerar o
espetáculo de seu império deserto e silencioso. Despachou o deus da
guerra, que libertou a Morte das mãos de seu vencedor.
Diz-se
também que Sísifo, estando prestes a morrer, imprudentemente quis
por à prova o amor de sua mulher. Ele lhe ordenou jogar o seu corpo
insepulto em plena praça pública. Sísifo se recobrou nos infernos.
Ali, exasperado com uma obediência tão contrária ao amor humano,
obteve de Plutão o consentimento para voltar à terra e castigar a
mulher. Mas, quando ele de novo pôde rever a face deste mundo,
provar a água e o sol, as pedras aquecidas e o mar, não quis mais
retornar à escuridão infernal. Os chamamentos, as iras as
advertências de nada adiantaram. Ainda por muitos anos ele viveu
diante da curva do golfo, do mar arrebentando e dos sorrisos da
terra. Foi necessária uma sentença dos deuses. Mercúrio veio
apanhar o atrevido pelo pescoço e, arrancando-o de suas alegrias,
reconduziu-o à força aos infernos, onde seu rochedo estava
preparado.
Já
deu para compreender que Sísifo é o herói absurdo. Ele o é tanto
por suas paixões como por seu tormento. O desprezo pelos deuses, o
ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse suplício
indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada.
É o preço a pagar pelas paixões deste mundo. Nada nos foi dito
sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a
imaginação os anime. Neste caso, vê-se apenas todo o esforço de
um corpo estirado para levantar a pedra enorme, rolá-la e fazê-la
subir uma encosta, tarefa cem vezes recomeçada. Vê-se o rosto
crispado, a face colada à pedra, o socorro de uma espádua que
recebe a massa recoberta de barro, e de um pé que a escora, a
repetição na base do braço, a segurança toda humana de duas mãos
cheias de terra. Ao final desse esforço imenso, medido pelo espaço
sem céu e pelo tempo sem profundidade, o objetivo é atingido.
Sísifo, então, vê a pedra desabar em alguns instantes para esse
mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até os cimos. E
desce de novo para a planície.
É
durante esse retorno, essa pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto
que pena, assim tão perto das pedras, é já ele próprio pedra!
Vejo esse homem redescer, com o passo pesado mas igual, para o
tormento cujo fim não conhecerá. Essa hora que é como uma
respiração e que ressurge tão certamente quanto sua infelicidade,
essa hora é aquela da consciência. A cada um desses momentos, em
que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no covil dos deuses,
ele é superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo.
Se
esse mito é trágico, é que seu herói é consciente. Onde estaria,
de fato, a sua pena, se a cada passo o sustentasse a esperança de
ser bem-sucedido? O operário de hoje trabalha todos os dias de sua
vida nas mesmas tarefas e esse destino não é menos absurdo. Mas ele
só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente.
Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda
a extensão de sua condição miserável: é nela que ele pensa
enquanto desce. A lucidez que devia produzir o seu tormento consome,
com a mesma força, sua vitória. Não existe destino que não se
supere pelo desprezo.
Se
a descida, assim, em certos dias se faz para a dor, ela também pode
se fazer para a alegria. Esta palavra não está demais. Imagino
ainda Sísifo indo outra vez para seu rochedo, e a dor estava no
começo. Quando as imagens da terra se mantêm muito intensas na
lembrança, quando o apelo da felicidade se faz demasiadamente
pesado, acontece que a tristeza se impõe ao coração humano: é a
vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O enorme desgosto é
pesado demais para carregar. São nossas noites de Getsêmani. Mas as
verdades esmagadoras perecem ao serem reconhecidas. Assim, Édipo de
início obedece ao destino sem o saber. A partir do momento em que
ele sabe, sua tragédia principia. Mas no mesmo instante, cego e
desesperado, reconhece que o único laço que o prende ao mundo é o
frescor da mão de uma garota. Uma fala descomedida ressoa então:
“Apesar de tantas experiências, minha idade avançada e a grandeza
da minha alma me fazem achar que tudo está bem.” O Édipo de
Sófocles, como o Kirílov de Dostoiévski, dá assim a fórmula da
vitória absurda. A sabedoria antiga torna a se encontrar com o
heroísmo moderno.
Não
se descobre o absurdo sem ser tentado a escrever algum manual de
felicidade. “Mas como, com umas trilhas tão estreitas?” No
entanto, só existe um mundo. A felicidade e o absurdo são dois
filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a
felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Ocorre do mesmo
modo o sentimento do absurdo nascer da felicidade. “Acho que tudo
está bem”, diz Édipo, e essa fala é sagrada. Ela ressoa no
universo feroz e limitado do homem. Ensina que tudo não é e não
foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele havia entrado com
a insatisfação e o gosto pelas dores inúteis. Faz do destino um
assunto do homem e que deve se acertado entre os homens.
Toda
a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence.
Seu rochedo é sua questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando
contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo
subitamente restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas
vozes maravilhadas da terra. Apelos inconscientes e secretos,
convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da
vitória. Não existe sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite.
O homem absurdo diz sim e seu esforço não acaba mais. Se há um
destino pessoal, não há nenhuma destinação superior ou, pelo
menos, só existe uma, que ele julga fatal e desprezível. No mais,
ele se tem como senhor de seus dias. Nesse instante sutil em que o
homem se volta sobre sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu
rochedo, contempla essa sequência de atos sem nexo que se torna seu
destino, criado por ele, unificado sob o olhar de sua memória e em
breve selado por sua morte. Assim, convencido da origem toda humana
de tudo o que é humano, cego que quer ver e que sabe que a noite não
tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo continua a rolar.
Deixo
Sísifo no sopé da montanha! Sempre se reencontra seu fardo. Mas
Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os
rochedos. Ele também acha que tudo está bem. Esse universo
doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil.
Cada
um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia
de noite, só para ele forma um mundo. A própria luta em direção
aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É
preciso imaginar Sísifo feliz.
___________
*O
título camusiano encerra, no original francês, um trocadilho
excelente e, como quase todos, intraduzível: Le mythe de Sisyphe
soa precisamente como le mythe décisif (o mito decisivo). (N.
do T.)
Albert Camus, in O Mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo
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