Um
tanto cansado das coisas de hoje, compro o Jornal do Commercio para
me engolfar na leitura do jornal de um século atrás.
Estamos
a 30 de dezembro de 1865 e talvez esse mesmo sudoeste espanque as
espumas desse mesmo oceano verde-cinza. Onde estará a esta hora o
pardo Januário? Ele fugiu há mais de três anos da casa do
Comendador Barroso, que todavia não cessa de procurá-lo.
Deve
valer alguma coisa o pardo escravo, pois o comendador promete 300
mil-réis a quem o prender, e ameaça quem lhe tenha dado homizio e
escapula. Esconde-te bem, pardo Januário!
Quem
chegou foi o Braguinha, e chegou botando falação pelos jornais, o
Braguinha da Fama do Café com Leite. Trouxe para vender novos
aparelhos e máquinas, maravilhoso café, chá superior, belo
chocolate, mas é desagradável o Braguinha ao chamar os fregueses e
dizer: “Aqui se encontra tudo do bom e do melhor, contanto que
tragam os cobrinhos porque vales não se recebem cá.” E ainda nos
diverte que “quanto aos afamados sorvetes de 320 réis, só haverão
em noite de espetáculo, e isto quando não chover; e quem os quiser
saborear nos camarotes deve prevenir com antecedência para não
haver falta”. Dá vontade de ir lá, bater à porta do Braguinha, e
perguntar: “Hoje haverão sorvetes?”
O
jornal reclama contra a demora na saída das mercadorias da
Alfândega, que dá prejuízos ao Comércio, e diz candidamente:
“estamos certos de que o governo não deixará de prestar a devida
atenção”. Pois sim, colega.
Há
outras notas — uma reunião de conservadores para estudar a
resposta à Fala do Trono, o anúncio de um professor de caligrafia,
“inventor da letra corrida comercial”, leilão de bens incluindo
dois escravos, um bote e um oratório de ouro e prata, o que tudo
pode ser visto da casa do finado, na Praia Pequena —, mas triste,
triste me parece este aviso: “Perdeu-se ou roubaram, na noite de 15
do corrente, a uma preta embriagada, uma trouxa de roupa suja, em que
havia também uma panela de barro e um folheto.”
Penso
nessa remota negra embriagada, nessa humilde trouxa de roupa suja,
nessa panela de barro e nesse famoso folheto. Que dizia o folheto?
Ah, negra cachaceira, que fizeste do folheto? Cem anos depois de tua
bebedeira eu fico cismando nesse folheto; e olhando o mar e pensando
na vida e na minha impossível amada, e na tristeza dos tempos que
vão, imagino que talvez esse folheto trouxesse a palavra essencial;
ali devia estar escrita a explicação das coisas, ali o consolo de
nosso peito, ali a senha de nosso destino.
Perdeu-se,
perdeu-se para sempre o folheto escondido numa panela de barro dentro
da trouxa de roupa suja, nas mãos de uma negra bêbada. Venta,
sudoeste frio, venta, acabrunha esse mar e este país tristonho, que
se perdeu o folheto; e como encontrá-lo agora, cem anos depois, o
folheto que seria a salvação do povo; que traria a última palavra
de esperança, e se perdeu na noite?
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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