segunda-feira, 28 de março de 2022

Dois reinos

No começo eles voavam num paraíso absolutamente celestial, como deve ser, em meio a uma paisagem ofuscante e azul, sobre densas e volumosas nuvens. A aeromoça já não era conterrânea deles, era outra, vestia um maravilhoso uniforme branco de linho sem botões e oferecia principalmente bebidas de sabores estrangeiros.
Os passageiros estavam todos semiadormecidos, esgotados, e quando Lina percorreu todo o avião até a cauda, ficou surpresa com a cor amarela idêntica do rosto dos passageiros, os cabelos pretos com cortes idênticos. Ela até se assustou, era como se um regimento de soldados estivesse sendo transferido para um novo acampamento. Aqueles soldados dormiam de forma idêntica, as bocas escuras e ressecadas entreabertas e meio de lado, exaustas. Ou quem sabe era a embaixada inteira de um país distante do sul.
Depois caiu a noite. Lina nunca havia voado por tanto tempo e para tão longe, ela passou parte da noite no banheiro, olhando pela janela convexa. Ali se viam as estrelas acima, ao lado e embaixo, ao longe, onde realmente era possível confundir essas estrelas com as luzes dos povoados, de um brilho nebuloso. Correndo solitária na bruma noturna, entre a abundância de estrelas, aquela alma humana se encontrava em êxtase no centro do universo, entre astros grandes e aveludados que se moviam na mais completa e profunda escuridão. Sozinha no meio das estrelas!
Lina até começou a chorar. Com dificuldade agora se lembrava dos minutos de despedida da família, da sua terra, tudo isso se confundia dentro dela num só novelo cansativo, e ela não conseguia de jeito nenhum desemaranhar o que estava no começo e o que vinha depois. A aparição mágica de Vássia com as passagens e a licença para casar, umas formalidades complicadas, as lágrimas da mãe enquanto as enfermeiras vestiam Lina com o vestido branco e a desciam de cadeira de rodas, no elevador; lá, Vássia pegou Lina pelos braços e colocou-a no carro… Lina ou perdeu a consciência ou adormeceu embalada pelo carro — em todo caso, ela lembrava tudo o que havia acontecido como um sonho: a música boba, as pessoas surpresas, horrorizadas dos dois lados, os espelhos nos quais se refletiam Vássia de barba e ela, cinza, esgotada, toda vestida de renda branca e com olhos fundos. Vássia estava levando Lina de avião para se tratar.
Mesmo assim, antes da partida pelo visto haviam feito uma operação que já estava planejada, e Lina já não se lembrava de tudo o que aconteceu depois da operação. Um gemido da mãe, como se abafado por um travesseiro, o choro do filho assustado com a música, as flores e a cara de Lina, evidentemente; ele chorava como sempre choram as crianças assustadas quando batem em sua mãe ou quando as separam delas para levá-las embora: chorava alto, gritando como um endiabrado. Ele era pequeno demais, foi preciso deixá-lo com a avó, já que Lina tinha pela frente mais uma operação em outra cidade, em outro país e com um novo marido, esse Vássia de barba que tinha aparecido não se sabe de onde.
Esse Vássia era uma lenda. Ele aparecia uma vez por ano, surgia do meio da multidão, beijava a mão dela segurando-a com sua grande mão fria, prometia a Lina montanhas douradas e um futuro para o filho dela — mas não agora, em breve. Depois. Agora, justamente no momento do encontro, ainda era impossível. Mas depois ele prometeu levar Lina e o filhinho, e também a mãe, para um paraíso na terra em algum lugar distante à margem de um mar morno, entre colunas de mármore, quase com elfos voando; em suma, esperava por ela um futuro de Polegarzinha, como nos contos de fadas.
Depois, quando Lina ficou seriamente doente aos trinta e sete anos, esse Vássia começou a aparecer com mais frequência, consolando-a. Visitou-a depois da primeira operação — foi tão comovente, ele veio direto para a UTI , quando Lina já estava entregando a alma para Deus, com o soro, enxergando o braço esgotado e transparente… Ele passou com sua roupa branca como se usasse um avental de médico (ele adorava se vestir todo de branco), a única diferença era que estava descalço, mas ninguém notou. Ele queria levar Lina de lá imediatamente ao ver a aparência dela e os pontos que tinham dado. Porém, uma enfermeira veio correndo,esbaforida, mandou Vássia embora, aplicou mais uma injeção, chamou o médico e Vássia sumiu por muito tempo.
Da vez seguinte, ele veio diretamente para o hospital, explicou tudo, disse que a mãe dela estava de acordo e ela e a criança seriam levadas depois, ele deixaria todo o necessário para elas. Mas era preciso levar Lina naquele exato instante, porque não havia tempo a perder. No país onde agora morava aquele Vássia, tratavam da doença de Lina, haviam encontrado uma vacina e assim por diante. Para Lina, enfim, não fazia diferença, já que pela segunda vez ela já não estava se opondo nem à doença, nem à morte. Levaram-na sob o efeito de fortes narcóticos, e ela flutuava como se estivesse numa névoa.
Mesmo pensar no menino, em Seriojenka, não a torturava tanto.
E se eu morresse neste hospital”, Lina falava consigo, “seria melhor? Mas assim eu vou viver, e depois trago os dois para ficar comigo.”
Vássia, então, cumpriu todas as formalidades, ainda que os médicos insistissem em uma operação dizendo que sem ela a paciente não duraria mais um dia. Vássia esperou a operação, cumpriu as formalidades e apareceu para levar Lina mais uma vez, direto da UTI . Levaram-na cuidadosamente, trocaram a roupa dela, por causa disso ela parou de ver e escutar, depois voltou a si já voando diante de um céu azul e infinito, deserto, de um campo felpudo de nuvens abaixo do avião. Lina se surpreendeu muito ao ver que estava sentada ao lado de Vássia, e ainda por cima bebendo algum vinho leve, espumante, de uma taça. Depois ela até se levantou — Vássia estava dormindo, esgotado pelos afazeres — e andou com um passo surpreendentemente leve pelo avião. Nada lhe doía — pelo visto já haviam lhe aplicado algum analgésico.
O avião voava muito baixo sobre uma cidade maravilhosa que se estendia abaixo como uma grande maquete, com um rio resplandecente, pontes e uma enorme catedral de brinquedo. Parecia muito com Paris!
E então começou o estrondo da aterrissagem, e o avião, com seu nariz obtuso, largo como uma janela de hotel, literalmente parou, fazendo ruído como uma carroça e tremendo, num jardim silencioso. A janela tinha uma porta e dava num terraço, ao longe brilhava a curva do rio com pontes e algum arco do triunfo.
A Place Pigalle — por algum motivo Lina disse, e mostrou para Vássia. — Veja!
Vássia foi abrir a porta para o terraço, e teve início uma vida de conto de fadas.

* * *

Lina, no entanto, não podia se afastar do rio, mesmo que o tratamento tivesse começado e corresse bem. Vássia saía e não aparecia o dia inteiro. Ele não proibia Lina de nada, mas era claro que o rio e a catedral e aquela cidade maravilhosa ainda estavam muito distantes dela. Por enquanto ela começou a sair devagarzinho de casa, a vagar por uma só ruazinha, já que não tinha muita força.
Ali, ela notou, todos se vestiam como Vássia, como os melhores hippies que ela via nos filmes estrangeiros. Cabelos longos, lindos braços finos, roupas brancas, até coroas de flores. É verdade que nas lojas havia de tudo com o que era possível sonhar, mas, em primeiro lugar, Vássia não deixava dinheiro para Lina — pelo visto o tratamento consumia tudo, provavelmente era muito caro.
Em segundo lugar, não era possível mandar encomendas, e por algum motivo nem mesmo cartas. Aqui não era costume escrever! Não havia nem um pedacinho de papel em lugar nenhum, canetas em lugar nenhum. Não havia conexão — é possível que Lina estivesse numa espécie de quarentena, algo transitório.
Lá, depois do rio, ela via a verdadeira vida fervilhante da cidade estrangeira. Ali também havia de tudo: restaurantes, lojas. Mas não havia conexão. Lina por enquanto se movimentava apoiando-se com as duas mãos na parede, como uma recém-nascida, como um bebê que mal começou a andar. Quando Lina reclamou para Vássia que queria ir a uma loja, ele trouxe para ela um monte de roupas — de todo tipo, inclusive usadas, masculinas, femininas, infantis, e ainda por cima de diferentes tamanhos. Trouxe também uma mala de sapatos, recolhidos entre todos os seus conhecidos, como os amigos estrangeiros costumam trazer para os russos. Entre as roupas havia ceroulas masculinas cinza, Lina ficou um pouco sem graça por causa delas. Só Deus sabe que coisas eram aquelas e de quem eram! E onde ela iria guardar, Lina não sabia, porque ela mesma logo começou a vestir tudo de Vássia — algo como uma camisa branca e por cima um vestido branco de tecido fino. O tamanho das roupas dela e de Vássia eram iguais, a constituição de Vássia, uma pessoa saudável, era a mesma da exaurida Lina. Lina chorou um pouco com aquela roupa, à noite contou para Vássia que queria muito enviar uma encomenda para Serioja e a mãe, e mostrou dois montinhos. Vássia fechou a cara e ficou calado. De manhã todas as roupas haviam sumido.
Vássia, foi ficando claro, trabalhava ali mesmo, depois do rio, naquele povoado de acesso restrito, e não sentia a menor necessidade de atravessar a ponte e ir às catedrais e aos arcos; Lina teve que se adaptar à sua existência sossegada e comedida. É verdade, ela sabia que tudo poderia acontecer — o exemplo era sua própria vida anterior — , inclusive que o jovem Vássia, mais novo que ela, podia se apaixonar por alguém e ir embora. Ele não amava Lina, aquele Vássia barbudo, apesar de poupá-la de todo o trabalho. A comida aparecia sozinha, a roupa brilhava. Quando ele tinha tempo para fazer isso?
O quarto deles, que no delírio de Lina conservava traços do avião, tinha porta e janela voltadas para um terraço com colunas brancas, mas ali não se tinha nenhuma alegria. Lina suportava corajosamente sua separação de Serioja, da mãe, das amigas e do amigo Liev do instituto, ela entendia agora que a doença dela era incurável e só podia se esforçar para se manter no estado atual — sem dor, mas também sem forças; como ia ficar ali o barulhento Seriojenka com suas lágrimas tempestuosas e olhinhos vermelhos de choro! Em especial, como ficaria ali a mãe, venenosamente afável e também chorosa! Ali não havia mágoa nem choro, ali era outro país.
Aborrecida, sempre que podia Lina observava aquelas pessoas que pairavam de branco e suas danças de roda sobre o rio com uma música monótona da harpa (que atividade mais boba, aliás!) e suas sessões silenciosas em longas mesas conjuntas no restaurante, com taças do maravilhoso vinho local.
Lina gostaria muito de contar às amigas e à mãe o que ela pensava disso tudo, pelo menos escrever para elas que estava tudo bem, o tratamento corria normalmente, havia de tudo nas lojas, mas não se compravam coisas novas — primeiro, porque o preço era absurdo, e segundo, porque ali não se usavam aquelas coisas, e ela não estava acostumada com a comida, ainda que por enquanto não pudesse comer muito. E coisas assim. Que queria mandar uma encomendazinha para Serioja e para todos, mas por enquanto não havia oportunidade, não havia ligações postais entre os países
deles. Lina se arrastava pelas ruas, apoiando-se em tudo o que lhe caía nas mãos, e em pensamento escrevia cartas para casa.
Com o passar do tempo, porém, Lina começou a entender que a questão das cartas era impossível de ser resolvida. Vássia prometia com firmeza que mamãe e Seriojenka viriam, especialmente a mãe. Mas mamãe sem Seriojenka? Ou ele sem a avó? “Com o tempo”, dizia o barbudo Vássia, “com o tempo.”
Lina queria começar a comprar algo para a chegada da mãe, mas Vássia a fez entender que quando chegasse a hora tudo se resolveria.
Ali ninguém ficava agitado com o dia de amanhã, ali pelo visto estavam todos muito ocupados, mas em compensação a vida tinha uma organização ideal, estéril, confortável. Vássia trabalhava numa livraria dele, que herdara de uma tia, mas não levava livros para Lina, já que ela não entendia a língua estrangeira, e eles não tinham nada em russo. O próprio Vássia não sabia ler em russo.
Por fim, Lina aprendeu a andar flutuando como os nativos. No fim era muito simples. Era preciso subir para algum degrau mais alto e dar um passo muito largo no ar. O passo seguinte, o outro pé já executava pelo impulso, e cada pulo adiante era ainda mais livre e leve, como num sonho. O Vássia barbudo não disse nada, mas no momento certo desapareceu para sempre, pelo visto foi para além do rio, para a cidade rica, como calculou a solitária Lina, e a deixou completamente abastecida, como se verificou. No começo ela pensava, sem lágrimas e sem medo, que naquele momento a expulsariam do objeto voador deles e que a comida não ficaria para sempre na geladeira! Mas a geladeira se enchia regularmente, como se tivesse um elevador de cozinha, e Lina não comia nada, só bebia suco, e era saudável.
Chegou afinal o dia em que ela, pensativa e com saudades, deixou para trás os degraus de casa e correu a passos largos para a dança de roda na margem do rio; afastando as mãos de outras pessoas, incorporou-se à fileira geral e voou pelo círculo. Ela entendia, ela sabia, que havia algo de errado ali, e já não queria ver ali nem a mãe, nem o filhinho. Ela não queria nem encontrar ali aquele regimento de soldados e tinha esperança de não encontrar ninguém nunca mais, e se encontrasse, que não reconhecesse quem era, não distinguisse entre os rostos jovens, pálidos, tranquilos que voavam, como ela, livremente — e esperava não encontrar ali mais ninguém, naquele reino dos mortos, e nunca saber como sentiam saudades dela lá, no reino dos vivos.

Liudmila Petruchévskaia, in Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha: Histórias e contos de fadas assustadores

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