No
começo eles voavam num paraíso absolutamente celestial, como deve
ser, em meio a uma paisagem ofuscante e azul, sobre densas e
volumosas nuvens. A aeromoça já não era conterrânea deles, era
outra, vestia um maravilhoso uniforme branco de linho sem botões e
oferecia principalmente bebidas de sabores estrangeiros.
Os
passageiros estavam todos semiadormecidos, esgotados, e quando Lina
percorreu todo o avião até a cauda, ficou surpresa com a cor
amarela idêntica do rosto dos passageiros, os cabelos pretos com
cortes idênticos. Ela até se assustou, era como se um regimento de
soldados estivesse sendo transferido para um novo acampamento.
Aqueles soldados dormiam de forma idêntica, as bocas escuras e
ressecadas entreabertas e meio de lado, exaustas. Ou quem sabe era a
embaixada inteira de um país distante do sul.
Depois
caiu a noite. Lina nunca havia voado por tanto tempo e para tão
longe, ela passou parte da noite no banheiro, olhando pela janela
convexa. Ali se viam as estrelas acima, ao lado e embaixo, ao longe,
onde realmente era possível confundir essas estrelas com as luzes
dos povoados, de um brilho nebuloso. Correndo solitária na bruma
noturna, entre a abundância de estrelas, aquela alma humana se
encontrava em êxtase no centro do universo, entre astros grandes e
aveludados que se moviam na mais completa e profunda escuridão.
Sozinha no meio das estrelas!
Lina
até começou a chorar. Com dificuldade agora se lembrava dos minutos
de despedida da família, da sua terra, tudo isso se confundia dentro
dela num só novelo cansativo, e ela não conseguia de jeito nenhum
desemaranhar o que estava no começo e o que vinha depois. A aparição
mágica de Vássia com as passagens e a licença para casar, umas
formalidades complicadas, as lágrimas da mãe enquanto as
enfermeiras vestiam Lina com o vestido branco e a desciam de cadeira
de rodas, no elevador; lá, Vássia pegou Lina pelos braços e
colocou-a no carro… Lina ou perdeu a consciência ou adormeceu
embalada pelo carro — em todo caso, ela lembrava tudo o que havia
acontecido como um sonho: a música boba, as pessoas surpresas,
horrorizadas dos dois lados, os espelhos nos quais se refletiam
Vássia de barba e ela, cinza, esgotada, toda vestida de renda branca
e com olhos fundos. Vássia estava levando Lina de avião para se
tratar.
Mesmo
assim, antes da partida pelo visto haviam feito uma operação que já
estava planejada, e Lina já não se lembrava de tudo o que aconteceu
depois da operação. Um gemido da mãe, como se abafado por um
travesseiro, o choro do filho assustado com a música, as flores e a
cara de Lina, evidentemente; ele chorava como sempre choram as
crianças assustadas quando batem em sua mãe ou quando as separam
delas para levá-las embora: chorava alto, gritando como um
endiabrado. Ele era pequeno demais, foi preciso deixá-lo com a avó,
já que Lina tinha pela frente mais uma operação em outra cidade,
em outro país e com um novo marido, esse Vássia de barba que tinha
aparecido não se sabe de onde.
Esse
Vássia era uma lenda. Ele aparecia uma vez por ano, surgia do meio
da multidão, beijava a mão dela segurando-a com sua grande mão
fria, prometia a Lina montanhas douradas e um futuro para o filho
dela — mas não agora, em breve. Depois. Agora, justamente no
momento do encontro, ainda era impossível. Mas depois ele prometeu
levar Lina e o filhinho, e também a mãe, para um paraíso na terra
em algum lugar distante à margem de um mar morno, entre colunas de
mármore, quase com elfos voando; em suma, esperava por ela um futuro
de Polegarzinha, como nos contos de fadas.
Depois,
quando Lina ficou seriamente doente aos trinta e sete anos, esse
Vássia começou a aparecer com mais frequência, consolando-a.
Visitou-a depois da primeira operação — foi tão comovente, ele
veio direto para a UTI , quando Lina já estava entregando a alma
para Deus, com o soro, enxergando o braço esgotado e transparente…
Ele passou com sua roupa branca como se usasse um avental de médico
(ele adorava se vestir todo de branco), a única diferença era que
estava descalço, mas ninguém notou. Ele queria levar Lina de lá
imediatamente ao ver a aparência dela e os pontos que tinham dado.
Porém, uma enfermeira veio correndo,esbaforida, mandou Vássia
embora, aplicou mais uma injeção, chamou o médico e Vássia sumiu
por muito tempo.
Da
vez seguinte, ele veio diretamente para o hospital, explicou tudo,
disse que a mãe dela estava de acordo e ela e a criança seriam
levadas depois, ele deixaria todo o necessário para elas. Mas era
preciso levar Lina naquele exato instante, porque não havia tempo a
perder. No país onde agora morava aquele Vássia, tratavam da doença
de Lina, haviam encontrado uma vacina e assim por diante. Para Lina,
enfim, não fazia diferença, já que pela segunda vez ela já não
estava se opondo nem à doença, nem à morte. Levaram-na sob o
efeito de fortes narcóticos, e ela flutuava como se estivesse numa
névoa.
Mesmo
pensar no menino, em Seriojenka, não a torturava tanto.
“E
se eu morresse neste hospital”, Lina falava consigo, “seria
melhor? Mas assim eu vou viver, e depois trago os dois para ficar
comigo.”
Vássia,
então, cumpriu todas as formalidades, ainda que os médicos
insistissem em uma operação dizendo que sem ela a paciente não
duraria mais um dia. Vássia esperou a operação, cumpriu as
formalidades e apareceu para levar Lina mais uma vez, direto da UTI .
Levaram-na cuidadosamente, trocaram a roupa dela, por causa disso ela
parou de ver e escutar, depois voltou a si já voando diante de um
céu azul e infinito, deserto, de um campo felpudo de nuvens abaixo
do avião. Lina se surpreendeu muito ao ver que estava sentada ao
lado de Vássia, e ainda por cima bebendo algum vinho leve,
espumante, de uma taça. Depois ela até se levantou — Vássia
estava dormindo, esgotado pelos afazeres — e andou com um passo
surpreendentemente leve pelo avião. Nada lhe doía — pelo visto já
haviam lhe aplicado algum analgésico.
O
avião voava muito baixo sobre uma cidade maravilhosa que se estendia
abaixo como uma grande maquete, com um rio resplandecente, pontes e
uma enorme catedral de brinquedo. Parecia muito com Paris!
E
então começou o estrondo da aterrissagem, e o avião, com seu nariz
obtuso, largo como uma janela de hotel, literalmente parou, fazendo
ruído como uma carroça e tremendo, num jardim silencioso. A janela
tinha uma porta e dava num terraço, ao longe brilhava a curva do rio
com pontes e algum arco do triunfo.
— A
Place Pigalle — por algum motivo Lina disse, e mostrou para Vássia.
— Veja!
Vássia
foi abrir a porta para o terraço, e teve início uma vida de conto
de fadas.
*
* *
Lina,
no entanto, não podia se afastar do rio, mesmo que o tratamento
tivesse começado e corresse bem. Vássia saía e não aparecia o dia
inteiro. Ele não proibia Lina de nada, mas era claro que o rio e a
catedral e aquela cidade maravilhosa ainda estavam muito distantes
dela. Por enquanto ela começou a sair devagarzinho de casa, a vagar
por uma só ruazinha, já que não tinha muita força.
Ali,
ela notou, todos se vestiam como Vássia, como os melhores hippies
que ela via nos filmes estrangeiros. Cabelos longos, lindos braços
finos, roupas brancas, até coroas de flores. É verdade que nas
lojas havia de tudo com o que era possível sonhar, mas, em primeiro
lugar, Vássia não deixava dinheiro para Lina — pelo visto o
tratamento consumia tudo, provavelmente era muito caro.
Em
segundo lugar, não era possível mandar encomendas, e por algum
motivo nem mesmo cartas. Aqui não era costume escrever! Não havia
nem um pedacinho de papel em lugar nenhum, canetas em lugar nenhum.
Não havia conexão — é possível que Lina estivesse numa espécie
de quarentena, algo transitório.
Lá,
depois do rio, ela via a verdadeira vida fervilhante da cidade
estrangeira. Ali também havia de tudo: restaurantes, lojas. Mas não
havia conexão. Lina por enquanto se movimentava apoiando-se com as
duas mãos na parede, como uma recém-nascida, como um bebê que mal
começou a andar. Quando Lina reclamou para Vássia que queria ir a
uma loja, ele trouxe para ela um monte de roupas — de todo tipo,
inclusive usadas, masculinas, femininas, infantis, e ainda por cima
de diferentes tamanhos. Trouxe também uma mala de sapatos,
recolhidos entre todos os seus conhecidos, como os amigos
estrangeiros costumam trazer para os russos. Entre as roupas havia
ceroulas masculinas cinza, Lina ficou um pouco sem graça por causa
delas. Só Deus sabe que coisas eram aquelas e de quem eram! E onde
ela iria guardar, Lina não sabia, porque ela mesma logo começou a
vestir tudo de Vássia — algo como uma camisa branca e por cima um
vestido branco de tecido fino. O tamanho das roupas dela e de Vássia
eram iguais, a constituição de Vássia, uma pessoa saudável, era a
mesma da exaurida Lina. Lina chorou um pouco com aquela roupa, à
noite contou para Vássia que queria muito enviar uma encomenda para
Serioja e a mãe, e mostrou dois montinhos. Vássia fechou a cara e
ficou calado. De manhã todas as roupas haviam sumido.
Vássia,
foi ficando claro, trabalhava ali mesmo, depois do rio, naquele
povoado de acesso restrito, e não sentia a menor necessidade de
atravessar a ponte e ir às catedrais e aos arcos; Lina teve que se
adaptar à sua existência sossegada e comedida. É verdade, ela
sabia que tudo poderia acontecer — o exemplo era sua própria vida
anterior — , inclusive que o jovem Vássia, mais novo que ela,
podia se apaixonar por alguém e ir embora. Ele não amava Lina,
aquele Vássia barbudo, apesar de poupá-la de todo o trabalho. A
comida aparecia sozinha, a roupa brilhava. Quando ele tinha tempo
para fazer isso?
O
quarto deles, que no delírio de Lina conservava traços do avião,
tinha porta e janela voltadas para um terraço com colunas brancas,
mas ali não se tinha nenhuma alegria. Lina suportava corajosamente
sua separação de Serioja, da mãe, das amigas e do amigo Liev do
instituto, ela entendia agora que a doença dela era incurável e só
podia se esforçar para se manter no estado atual — sem dor, mas
também sem forças; como ia ficar ali o barulhento Seriojenka com
suas lágrimas tempestuosas e olhinhos vermelhos de choro! Em
especial, como ficaria ali a mãe, venenosamente afável e também
chorosa! Ali não havia mágoa nem choro, ali era outro país.
Aborrecida,
sempre que podia Lina observava aquelas pessoas que pairavam de
branco e suas danças de roda sobre o rio com uma música monótona
da harpa (que atividade mais boba, aliás!) e suas sessões
silenciosas em longas mesas conjuntas no restaurante, com taças do
maravilhoso vinho local.
Lina
gostaria muito de contar às amigas e à mãe o que ela pensava disso
tudo, pelo menos escrever para elas que estava tudo bem, o tratamento
corria normalmente, havia de tudo nas lojas, mas não se compravam
coisas novas — primeiro, porque o preço era absurdo, e segundo,
porque ali não se usavam aquelas coisas, e ela não estava
acostumada com a comida, ainda que por enquanto não pudesse comer
muito. E coisas assim. Que queria mandar uma encomendazinha para
Serioja e para todos, mas por enquanto não havia oportunidade, não
havia ligações postais entre os países
deles.
Lina se arrastava pelas ruas, apoiando-se em tudo o que lhe caía nas
mãos, e em pensamento escrevia cartas para casa.
Com
o passar do tempo, porém, Lina começou a entender que a questão
das cartas era impossível de ser resolvida. Vássia prometia com
firmeza que mamãe e Seriojenka viriam, especialmente a mãe. Mas
mamãe sem Seriojenka? Ou ele sem a avó? “Com o tempo”, dizia o
barbudo Vássia, “com o tempo.”
Lina
queria começar a comprar algo para a chegada da mãe, mas Vássia a
fez entender que quando chegasse a hora tudo se resolveria.
Ali
ninguém ficava agitado com o dia de amanhã, ali pelo visto estavam
todos muito ocupados, mas em compensação a vida tinha uma
organização ideal, estéril, confortável. Vássia trabalhava numa
livraria dele, que herdara de uma tia, mas não levava livros para
Lina, já que ela não entendia a língua estrangeira, e eles não
tinham nada em russo. O próprio Vássia não sabia ler em russo.
Por
fim, Lina aprendeu a andar flutuando como os nativos. No fim era
muito simples. Era preciso subir para algum degrau mais alto e dar um
passo muito largo no ar. O passo seguinte, o outro pé já executava
pelo impulso, e cada pulo adiante era ainda mais livre e leve, como
num sonho. O Vássia barbudo não disse nada, mas no momento certo
desapareceu para sempre, pelo visto foi para além do rio, para a
cidade rica, como calculou a solitária Lina, e a deixou
completamente abastecida, como se verificou. No começo ela pensava,
sem lágrimas e sem medo, que naquele momento a expulsariam do objeto
voador deles e que a comida não ficaria para sempre na geladeira!
Mas a geladeira se enchia regularmente, como se tivesse um elevador
de cozinha, e Lina não comia nada, só bebia suco, e era saudável.
Chegou
afinal o dia em que ela, pensativa e com saudades, deixou para trás
os degraus de casa e correu a passos largos para a dança de roda na
margem do rio; afastando as mãos de outras pessoas, incorporou-se à
fileira geral e voou pelo círculo. Ela entendia, ela sabia, que
havia algo de errado ali, e já não queria ver ali nem a mãe, nem o
filhinho. Ela não queria nem encontrar ali aquele regimento de
soldados e tinha esperança de não encontrar ninguém nunca mais, e
se encontrasse, que não reconhecesse quem era, não distinguisse
entre os rostos jovens, pálidos, tranquilos que voavam, como ela,
livremente — e esperava não encontrar ali mais ninguém, naquele
reino dos mortos, e nunca saber como sentiam saudades dela lá, no
reino dos vivos.
Liudmila Petruchévskaia, in Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha: Histórias e contos de fadas assustadores
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