terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A casa dos relógios

Estimada senhorita:

Já que me destaquei em suas aulas com minhas redações, cumpro com a promessa que fiz: me exercitarei escrevendo cartas. A senhorita me pergunta o que fiz nos últimos dias de férias, não?
Escrevo enquanto Joaquina ronca. É a hora da sesta e a senhorita sabe que, a essa hora e à noite, Joaquina, por causa da carne esponjosa que tem no nariz, ronca mais do que de costume. É chato, porque não deixa ninguém dormir. Escrevo à senhorita no caderninho dos deveres de casa, porque o papel de carta que consegui com o Pituco não tem linhas e a letra se espalha por todos os lados. Conto-lhe que Julia, a cachorrinha, agora dorme debaixo da minha cama, chora quando entra a luz da lua pela janela, mas eu não ligo, porque nem mesmo o ronco de Joaquina me desperta.
Fomos passear na lagoa La Salada. É muito gostoso se banhar. E me afundei no barro até os joelhos. Juntei plantas para o herbário e, nas árvores que ficam bem longe dali, juntei também ovos para minha coleção de pombas-torcazes, uracas e perdizes. As perdizes não põem ovos nas árvores, e sim no solo, coitadinhas. Me diverti muito na lagoa Salada; fizemos fortalezas de barro; mas me diverti ainda mais à noite, na festa da Ana María Sausa, dada pelo batizado de Rusito. O pátio todo estava decorado com lanternas de papel e serpentinas. Puseram quatro mesas, que improvisaram com tábuas e cavaletes, com comidas e bebidas de todo tipo, que eram de lamber os dedos. Não fizeram chocolate por causa da greve do leite e porque meu pai fica louco só de ver leite, mas faz mal para o fígado dele.
Naquele dia Estanislao Romagán abandonou o colosso de relógios que ele tem sob seus cuidados para ver como preparavam a festa e para ajudar um pouquinho (ele, que nem aos domingos nem em dias de festa deixa de trabalhar). Eu amava muito o Estanislao Romagán. A senhorita se lembra daquele relojoeiro corcunda que consertou seu relógio? O que vivia na casinha subindo esta rua, aquela que eu chamava de A Casa dos Relógios, que ele mesmo construiu e que parece uma casinha de cachorro? Aquele que se especializou em despertadores? Vá saber se a senhorita não o esqueceu! É difícil de acreditar! Relógios e corcundas não se esquecem assim, do dia para a noite. Pois esse é Estanislao Romagán. Com um projetor de slides, ele me mostrava um relógio de sol que disparava um canhão automaticamente ao meio-dia, outro que não era de sol e cuja parte exterior representava uma fonte; outro, o relógio de Estrasburgo, com escada, carruagem e cavalos, figuras de mulheres com túnicas e homenzinhos esquisitos. A senhorita não vai acreditar, mas era muito agradável escutar, a qualquer momento, as diferentes sinetas de todos os despertadores e os relógios que davam as horas mil vezes por dia. Meu pai não pensava assim.
Para a festa, Estanislao desenterrou um terno que tinha guardado em um pequeno baú, entre dois ponchos, uma manta e três pares de sapatos que não eram dele. O terno estava amarrotado, mas, depois de lavar o rosto e pentear os cabelos, muito lustrosos, negros e que chegam quase até suas sobrancelhas, como um gorro catalão, Estanislao ficou bem elegante.
Sentado, com a nuca apoiada sobre uma almofada, ficaria bem. Tem boa presença, melhor que a de muitos convidados — comentou minha mãe.
Me deixa tocar suas costinhas? — dizia-lhe Joaquina, correndo com ele pela casa.
Ele permitia que tocassem suas costas, porque era bonzinho.
E para mim, quem é que traz sorte?² — dizia.
Você é um sortudo — respondia Joaquina —, tem a sorte em cima de você.
Mas eu achava uma injustiça dizer isso a ele. A senhorita não acha também?
A festa foi maravilhosa. E aquele que disser que não, está mentindo. Pirucha dançou rock e Rosita, danças espanholas; ela é loira, e mesmo assim dança com graça.
Comemos sanduíches de três andares, mas um pouquinho secos, merengues rosados com gosto de perfume, desses pequenininhos, e bolo e alfajores. As bebidas eram deliciosas. Pituco as misturava, as batia, as servia como um verdadeiro garçom profissional. Todo mundo me dava um pouquinho daqui, um pouquinho de lá, e assim cheguei a juntar e a beber o conteúdo de três taças, pelo menos. Iriberto me perguntou:
Che, garoto, quantos anos você tem?
Nove.
Bebeu alguma coisa?
Não. Nem um gole — respondi, porque me deu vergonha.
Então tome esta taça.
E me fez beber um licor que me queimou a garganta até a campainha. Ele riu e disse:
Assim vai virar homem.
Não se faz esse tipo de coisa com um menino, não acha, senhorita?
As pessoas estavam muito alegres. Minha mãe, que fala pouco, conversava como qualquer senhora, e Joaquina, que é tímida, dançou sozinha cantando uma canção mexicana que não sabia de memória. Eu, que sou retraído, conversei até com o velhinho malvado que sempre me manda para o diabo. Já era tarde quando, por fim vestido e penteado, Estanislao Romagán desceu de sua casinha, desculpando-se por usar um terno amarrotado. Aplaudiram-no e lhe deram de beber. Desdobraram-se em mil atenções a ele: lhe ofereceram os melhores sanduíches, os melhores alfajores, as bebidas mais gostosas. Uma moça, a mais bonita da festa, na minha opinião, arrancou uma flor de uma trepadeira e a colocou em sua lapela. Posso dizer que ele era o rei da festa e que foi ficando alegre com cada taça que tomava. As senhoras lhe mostravam os relógios de pulso desajustados ou quebrados, que quase todas levavam na munheca. Ele os examinava sorridente, prometendo que ia acertá-los sem cobrar nada. De novo se desculpou por usar um terno tão amarrotado e, rindo, disse que era porque não estava acostumado a ir a festas. Então Gervasio Palmo, que tem uma tinturaria atrás de casa, aproximou-se dele e disse:
Vamos passar o terno agora mesmo. Para que servem as tinturarias se não para passar os ternos dos amigos?
Todos acolheram a ideia com entusiasmo, até o próprio Estanislao, que é tão moderado, gritou de alegria e deu uns passinhos no compasso da música vinda de um aparelho de rádio que estava no meio do pátio. Assim iniciaram a peregrinação à tinturaria. Minha mãe, aborrecida porque tinham lhe quebrado o enfeite mais bonito da casa e sujado um caminho de mesa de macramê, me segurou pelo braço:
Não vá, querido. Me ajude a arrumar os estragos.
Como se o gato³ estivesse falando comigo (ainda que a senhorita não acredite), saí correndo atrás de Estanislao, de Gervasio e do resto da comitiva. Depois da casinha dos relógios do Estanislao Romagán, a casa de que eu mais gosto no bairro é essa tinturaria La Mancha. Dentro dela há fôrmas de chapéus, enormes tábuas de passar, aparatos que soltam vapor, recipientes gigantescos e um aquário, com peixes coloridos. O sócio de Gervasio Palmo, que chamamos de Nakoto, é um japonês, e o aquário é dele. Uma vez ele me deu de presente uma plantinha, que morreu em dois dias. Como ele pode querer que um menino goste de uma planta? Essas coisas são para os adultos, não acha, senhorita? Mas Nakoto usa óculos, tem os dentes muito afiados e os olhos muito compridos; não me atrevi a dizer isto a ele: o que eu queria que ele tivesse me dado era um dos peixes. Qualquer um me entenderia.
Já tinha escurecido. Caminhamos meia quadra cantando uma canção que desafinávamos ou que não existe. Na frente da tinturaria, Gervasio Palmo procurou as chaves no bolso, demorou para encontrá-las, porque tinha muitas. Quando abriu a porta, todos nos amontoamos e ninguém conseguia entrar, então Gervasio Palmo impôs a calma com sua voz de trovão. Nakoto nos afastou, acendeu as luzes da casa, tirando os óculos. Entramos numa sala enorme, que eu não conhecia. Diante de uma fôrma que parecia uma sela de cavalo, parei para olhar o lugar onde iam passar o terno de Estanislao.
Tiro a roupa? — perguntou Estanislao.
Não — respondeu Gervasio —, não se preocupe. Vamos passá-la no seu corpo.
E a giba? — quis saber Estanislao, timidamente.
Era a primeira vez que eu escutava essa palavra, mas, pela conversa, entendi o que significava (veja só que progresso em meu vocabulário).
Também vamos passá-la — respondeu Gervasio, dando-lhe uma palmada no ombro.
Estanislao se acomodou sobre uma mesa comprida, como lhe ordenou Nakoto, que estava preparando as tábuas de passar. Um cheiro de amoníaco, de diferentes ácidos, me fez espirrar: tampei a boca com um lenço, seguindo seus ensinamentos, senhorita, mas alguém me disse “porco”, o que me pareceu muita falta de educação. Que exemplo para um menino! Ninguém ria, a não ser Estanislao. Todos os homens esbarravam em algo, nos móveis, nas portas, nos utensílios de trabalho, neles mesmos. Traziam trapos úmidos, recipientes, tábuas. Aquilo parecia, ainda que a senhorita não acredite, uma operação cirúrgica. Um homem caiu no chão e me deu uma rasteira que por pouco não me arrebenta todo. Por isso, ao menos para mim, a alegria tinha acabado. Comecei a vomitar. A senhorita sabe que meu estômago é muito saudável e que os colegas do colégio me chamavam de avestruz, porque eu engolia qualquer coisa. Não sei o que aconteceu comigo. Alguém me tirou dali voando e me levou para casa.
Não voltei a ver Estanislao Romagán. Muita gente veio pegar os relógios e um caminhãozinho da relojoaria La Parca retirou os últimos, entre os quais havia um que parecia uma casa de madeira, meu preferido. Quando perguntei para minha mãe onde estava Estanislao, ela não quis me responder como devia ter respondido. Disse, como se falasse com o cachorro: “Foi para outro lugar”, mas tinha os olhos vermelhos de chorar por causa do caminho de mesa de macramê e do enfeite, e me fez ficar quieto quando mencionei a tinturaria.
Daria tudo para saber alguma coisa do Estanislao. Quando souber de algo, escrevo outra vez para a senhorita.
Saudações carinhosas, seu aluno preferido.
N. N.
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2. Crendice popular que diz que tocar as costas de alguém corcunda traz boa sorte. (N. T.)
3. Gato é uma música (e uma dança) crioula, típica do folclore argentino. (N. T.)

Silvina Ocampo, in A fúria

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