— De acrílico, de fórmica, de isopor,
meticulosamente combinados, fiz meu segundo coração, para enfrentar
situações a que o primeiro, o de nascença, não teria condições
de resistir. Tornei-me, assim, homem de dois corações. A operação
sigilosa foi ignorada pelos repórteres. Eu mesmo fabriquei meu
coração novo, nos fundos da casa onde moro. Nenhum vizinho
desconfiou, mesmo porque sabem que costumo fechar-me em casa, semanas
inteiras, modelando bonecos de barro ou de massa, que depois ofereço
às crianças. Oferecia. Meus bonecos não têm arte, representam o
que eu quero. Fiz um Einstein que acharam parecido com Lampião. Para
mim, era Einstein. Os garotos riam, tentando adivinhar que tipos eu
interpretara. Carlito! Não era. Às vezes, não sei por quê,
admitia que fosse Carlito. Nunca dei importância a leis de
semelhança e verossimilhança, que sufocam toda espécie de criação.
Mas, como disse, fiz meu coração sem
ninguém saber. E à noite, em perfeita lucidez, abrindo o peito
mediante processo que não vou contar, pois minha descrição talvez
horrorizasse o leitor, e eu não pretendo horrorizar ninguém —
abrindo o peito, instalei lá dentro esse coração especial,
regulado para não sofrer. Ao mesmo tempo, desliguei o outro. Como?
Também prefiro não explicar. Possuo extrema habilidade manual,
aguçada à noite, e sei o que geralmente se sabe dos órgãos do
corpo e suas funções e reações, depois que ficou na moda tratar
dessas coisas em jornais e revistas. Além disto, minha capacidade de
resistir à dor física sempre foi praticamente ilimitada. Desde
criança. Mas as dores morais, as dores alheias, as dores do mundo,
acima de tudo, estas sempre me vulneraram. Recompus a incisão, senti
que tudo estava perfeito, e fui dormir.
Na manhã seguinte, ao ler as notícias
que falavam em fome no Paquistão, guerra civil na Irlanda, soldados
que se drogam no Vietnã para esquecer o massacre, explosão
experimental de bombas de hidrogênio, tensão permanente no canal de
Suez, golpes vitoriosos ou malogrados na América Latina, bem, não
senti absolutamente nada. O coração funcionava a contento. Fui para
o trabalho experimentando sensação inédita de leveza. No caminho,
vi um corpo de homem e outro de mulher estraçalhados entre restos de
um automóvel. Pela primeira vez pude contemplar um espetáculo
desses sem me crispar e sem envenenar o meu dia. Fitei-o como a
objetos de uma casa expostos na calçada, em hora de mudança. E
passei um dia normal. Trabalho, refeições, sono, igualmente
normais, coisa que não acontecia há anos.
Meu coração fora planejado para evitar
padecimento moral, e desempenhava bem a função. Assisti impassível
a cenas que antes me fariam explodir em lágrimas ou protestos.
Felicitei-me pela excelência. Mas aí começou a ocorrer um fenômeno
desconcertante. Eu, que não sofria com as doenças que me
assaltavam, passei a sentir reflexos de moléstias inexistentes.
Simples corte no dedo, sem inflamação, afligia-me como chaga
aberta. Dor de cabeça que passa com um comprimido ficava durante
semanas. Meu corpo tornou-se frágil, exposto ao sofrimento. E eu não
tinha nada. Consultei especialistas, fiz checkup, não se descobriu
qualquer lesão ou distúrbio funcional. Eram penas imotivadas,
gratuitas. Meu coração nº 2 passava pela radiografia sem ser
percebido. Irredutível à dor moral, era invisível a aparelhos de
precisão.
Comecei a sofrer tanto com os meus males
carnais que a vida se tornou insuportável. A dor aparecia
especialmente em horas impróprias. Em reuniões sociais. Em
concertos. No escritório, ao tratar de negócios. Então fazia
caretas, emitia gemidos surdos, assumindo aspecto feroz.
Assustavam-se, queriam chamar ambulância, eu recusava. Tinha medo de
que descobrissem o coração fabricado.
Outra coisa: as crianças começaram a
achar estranhos meus bonecos, não queriam aceitá-los. Sempre gostei
de crianças. E elas me repeliam. Esmerei-me na feitura de peças que
pudessem cativá-las, mas em vão.
Hoje vi um homem encostado a um oiti,
diante do mar. Sua expressão de angústia dava ao rosto o aspecto de
chão ressecado. Tive pena dele. Surpreso, ignorando tudo a seu
respeito, mas participando de sua angústia e trazendo-a comigo para
casa.
Agora à noite, decidi-me. Voltei a abrir
o peito e examinei o coração segundo. Com pequena fissura no
isopor, já não era perfeito. Ao tocá-lo, as partes se descolaram.
Inútil restaurá-lo. Joguei fora os restos, liguei o antigo, e
fechei o cavername. Talvez pela falta de uso, sinto que o coração
velho está rateando. Que fazer? E vale a pena fazer? A manhã tarda
a chegar, e não encontro resposta em mim.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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