sábado, 23 de outubro de 2021

Vallejo sobrevive

César Vallejo em Paris, em 1929

Outro homem foi Vallejo. Nunca esquecerei sua grande cabeça amarela, parecida com as que se veem nas antigas janelas do Peru. Vallejo era sério e puro. Morreu em Paris. Morreu do ar sujo de Paris, do rio sujo de onde tiraram tantos mortos. Vallejo morreu de fome e de asfixia. Se o tivéssemos trazido para o Peru, se o tivéssemos feito respirar ar e terra peruana, talvez estivesse vivo e cantando. Escrevi em épocas diferentes dois poemas sobre meu amigo íntimo, sobre meu bom camarada. Neles creio estar descrita a biografia de nossa amizade diversificada. O primeiro, “Ode a César Vallejo”, aparece no primeiro volume de Odas Elementales.
Nos últimos tempos, nesta pequena guerra da literatura, a guerra mantida por pequenos soldados de dentes ferozes, têm estado lançando Vallejo, a sombra de César Vallejo, a ausência de César Vallejo, a poesia de César Vallejo contra mim e minha poesia. Isto pode acontecer em toda parte. Trata-se de ferir os que trabalharam muito. Dizer: “este não é bom; Vallejo sim é que era bom.” Se Neruda estivesse morto, o lançariam contra Vallejo vivo.
O segundo poema, cujo título é uma letra só (a letra V), aparece em Estravagario.
Para buscar o indefinível, o mapa ou o fio que une o homem à obra, falo daqueles que tiveram algo ou muito que ver comigo. Vivemos em parte a vida juntos e agora eu sobrevivo a eles. Não tenho outro meio de indagar o que chamam de mistério poético e que eu chamaria de claridade poética. Tem que haver alguma relação entre as mãos e a obra, entre os olhos, as vísceras, o sangue do homem e seu trabalho. Mas eu não tenho teoria a respeito. Não ando com um dogma debaixo do braço para deixá-lo cair na cabeça de ninguém. Como quase todas as pessoas, vejo tudo claro na segunda-feira, vejo tudo escuro na terça e acho que este ano é claro-escuro. Os próximos anos serão azuis.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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