Quando ele entrou, cheio de casaco e
borogodó, eu já sabia: ia dar merda.
Não. Não vai dar, não. Tento me
convencer, me controlo, mantenho as rédeas, seguro a onda. Sei lidar
muito bem com essas situações. Jogo o cabelo pro lado, cruzo a
perna, rio um riso mudo, pisco sem pressa.
Domino esta arte de disfarçar o
encantamento e encantar disfarçadamente.
Movimentos de pescoço que parecem ser
fruto da brisa que não há, lábios que simultaneamente são
umedecidos por um princípio cor-de-rosa de língua e esboçam um
sorriso unilateral.
Estou tranquila. Ele pode lançar quantos
olhares quiser. Pode sentar por perto. Acho ótimo, é quase uma
dança. Estou tranquila, jogo bem esse jogo.
Sei fingir que estou à vontade, que não
estou preocupada com a vista que ele tem do meu perfil que tanto
detesto. Mexo nos cabelos outra vez. Procuro nada na bolsa. Olho para
as unhas que estão sempre lá.
E então ele vem. Caminha sem
formalidades, me olha com persistência, me dirige três ou quatro
palavras tão bem escolhidas.
Na minha cabeça, ecoava: “Não olhe
para a boca, não olhe para a boca, não olhe para a boca”. É um
mantra emergencial para não cair na tentação de perder o controle.
E é um sinal de que não adianta mais ficar simplesmente alerta.
Respondo evasiva, sugando de dentro de
mim meu melhor ar de serenidade-semi-indiferença. Viro os olhos por
cima do globo, encolho os ombros e sorrio para ficar tudo bem
nonsense. Faz parte do ritual.
Ele continua a conversa. E eu, que para
fugir da boca foquei os olhos, me lasquei. Era um indecente par de
olhos azuis, com algum amarelo no centro, que soltava faísca contra
os meus.
Que jeito? “Não olhe para a boca nem
para os olhos, não olhe para a boca nem para os olhos.” Fixei-me
no farto cabelo, cor de mel de urze.
Já não ouvia patavinas do que ele
dizia. Desci da raiz do cabelo até a orelha, da orelha até o
pescoço. Que erro. Que erro. Sentia o cheiro do pescoço, que era de
sofá bom, de carne vermelha, de fruta verde.
Volta, Ruth, volta. Pego parte do que ele
dizia; era sobre o gim. Olho para o copo, sorrindo desnorteada,
confirmando com a cabeça sei lá o quê. O copo estava na mão.
Reparo na mão. Não, Ruth, pare. Pare já, nem pense no que você
está pensando.
Talvez seja o caso de recorrer ao ar de
moça tímida, último recurso, lanterna dos afogados. Ele pergunta
se quero provar o gim, estico o braço devagar, tentando alcançar a
parte do copo mais distante daquelas mãos brancas, dado o caos que
se instaurou.
Levo o copo de pé com fatias de pepino
boiando no gim à boca.
Meu Jesus Cristo.
Que que é isso? Socorro, Jesus Maria
José. Como é ruim. Que gosto medonho, que porcaria. Credo, como
alguém paga pra beber isso? Pela madrugada. Por um instante, todo
aquele amargor me invade e esqueço do homem, da interpretação, da
pose e do semblante. Faço uma careta, balbucio um “argh”, olho
para o chão, pisco sete vezes. Balanço a cabeça como um cão que
sai do mar.
Volto desarmada. Subo os olhos e passo
pelas mãos,
pelo casaco escuro,
pelo ombro firme,
pelo pescoço,
pela boca proibida por tantas regras
e chego aos olhos claros que me esperavam
sorrindo, visivelmente encantados pela única parte que não foi
dosada, domada, nem premeditada.
Sorriu. Sorrimos. Deu merda. Não se foge
do destino.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
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