O camelô ficava na avenida Andrassy
perto do Boulevard Cervantes vendendo fotos pornográficas
especializadas.
— Fotos de mulheres sardentas olhando
você fixamente!
— Quão fixamente? — perguntou
baixinho um professor de filosofia.
— Muito fixamente! Como nos primeiros
estágios de uma sedução! — e, chegando perto do ouvido do
professor de filosofia: — Como se devassasse a sua alma! Como se
visse todas as virtudes dentro de você que ninguém jamais soube
reconhecer: sua galanteria, sua coragem extraordinária. Mas também
como se visse todos os seus defeitos, e simplesmente não se
importasse!
Ouvindo isso o professor de filosofia
sentiu um arrepio não tanto na coluna cervical mas na sua pequenina
alma e comprou três fotos de mulheres sardentas o olhando fixamente.
— Espero não me arrepender — disse,
e voltou de metrô, olhando de trinta em trinta segundos as fotos
escondidas dentro duma edição da Metafísica para Iluministas
Tímidos.
Ah ruas de Budapeste, onde amei e fui
amado por mulheres que existem dentro de romances que eu teria lido
se tivesse seguido o meu plano de ler mais romances húngaros:
desenrolem-se como um tapete felpudo ante os meus passos imaginários.
Num canto do Boulevard Cervantes há um café chamado Philidor, onde
o camelô parou para tomar dois ou três copitos de Muskotály. Da
sua pasta de fotos pornográficas especializadas o camelô tirou uma
foto e discretamente chamou a atenção do vizinho de mesa, um
velhinho que tomava sopa.
— Doutor, olha isto.
— Não sou doutor, sou um campônio.
— Perdão pelo engano mas seus cabelos
brancos são doutorados para mim.
— Ah, que é isso — disse o velhinho,
sua dentadura deslizando para fora de prazer.
— Veja isto, mas seja discreto.
O velhinho apanhou a foto e a colocou ao
lado do prato de sopa enquanto a examinava.
— Uma encantadora jovem tatuada, na
pia, arregalando os olhos.
— Colocando lentes de contato —
esclareceu o camelô.
— Ah! Percebo! Delicioso momento
íntimo, cotidiano! Mas o que é isto aqui?
— É a omoplata dela, doutor.
— Ah! Risqué, não?
— Se prefere algo mais contido...
— Não, quanto é?
— Quatro forintes.
— Caro! A menina vai à faculdade?
— É uma estudante de arte, doutor.
— E é muito namoradeira?
— Como uma russa num monte de feno.
Riram e depois de um momento sorriram um
para o outro, irmanados numa lubricidade sutil que é muitas vezes o
mais forte dos elos entre estranhos.
— Que mais tem você aí, meu pequeno
homenzinho de aparência gnômica?
O camelô passou para a mesa do velhinho
e silenciosamente espalhou várias fotos pela mesa.
— Uh! Ah! — dizia o velhinho. —
Jovens normais, aparentemente saudáveis, colocando ou tirando meias
de algodão. Esta aqui, que faz?
— Morde o pescoço do namorado que está
jogando um desses jogos eletrônicos que os jovens jogam.
— É o namorado mesmo?
— É a segunda vez que se encontram.
— Adoro o sorriso dela enquanto ela
morde.
— Sim, vê-se que ela pensa muito em
sexo.
— Safadinha. E esta mulher aqui? Parece
que tem enxaqueca.
— Sim, não é uma foto boa — disse o
camelô varrendo a foto para o lixo ao lado da mesa. — Mas olhe
esta. Deve ter 23, 24 anos e está jogando xadrez, percebe?
— O que é isto?
— Os pezinhos dela nus debaixo da mesa,
doutor.
— Oh! Ela está esfregando os pezinhos
um contra o outro?
— Aparentemente.
— Sim, distraída, enquanto pensa no
que fazer com a torre. Excelente.
— Se o senhor gosta de pezinhos… —
disse o camelô, indicando a foto de um pé muito pálido fazendo
carinho nas costas de um akita preto.
— O que é, um tapete?
— Um cachorro.
— Mas como eu sei se a mulher é
bonita?
— Percebe-se, eu diria.
— Sim, percebe-se — admitiu o velho.
Depois, sem vergonha:
— Tem foto de mamilo?
Imediatamente o rosto do camelô se
fechou como se ele tivesse acabado de ouvir que sua ex-mulher fez
sexo com um anão que chora muito, e ele começou a recolher as
fotos.
— Isso não tenho. Se é isso que
deseja, há outros fornecedores…
— Não, foi só uma pergunta.
— Perdão. É que há coisas que não
vendo.
— Eu é que peço perdão, meu caro
gnomo benigno.
A boa vontade foi restaurada ao rosto do
camelô, como a bandeira de uma dinastia restituída ao trono depois
de uma revolução socialista. Inclinando-se na direção do velhinho
o camelô sorriu e disse:
— Bom, talvez a borda de um mamilo. Mas
guardo em outra pasta...
— Não se incomode. O que esta foto do
pé aqui me lembrou, o que este close-up — o velhinho exagerou na
pronúncia do inglês — me lembrou de verdade, é não de um pé,
muito menos de um mamilo, mas de uma mão.
— Sim?
— Sim. E não de qualquer mão, mas da
mão de uma menina que conheci na juventude, quando eu era bonito.
Porque eu era bonito, acredite.
— Opa.
— E você tem?
— Várias. Esta mão feminina com as
unhas não pintadas, por exemplo, agarrando um dedão de pé de
homem… Um tanto ousada, admito.
— Não, a foto da mão da minha
namorada de anos atrás.
O camelô olhou pensativo para o
velhinho.
— Se o senhor descrever essa mão.
— É fácil. Quero uma foto da mão
dela com a palma voltada para cima. Quero que a foto pegue da parte
interna do cotovelo até a ponta dos dedos. Ao longo do antebraço
ela tinha várias pintas. Cinco, para ser exato, nestes pontos aqui.
O velhinho tocou com o indicador em cinco
pontos do antebraço do camelô.
— Fazendo uma curva — disse.
— Certamente não tenho na pasta, mas
procurarei no meu arquivo em casa. Se puder me encontrar aqui na
terça…
— O motivo de querer a foto — disse o
velhinho sem ouvir, sorrindo bestamente — a foto dessa mão e não
outra, você sabe, é porque ela, a dona da mão, era tão bonita,
ninguém diria que uma mulher tão bonita sairia com um camponês
como eu, que ganha a vida masturbando morcegos para fazer queijinhos
mais tarde condimentados com páprica. Nos encontramos num café,
parecido com este… Nos beijamos. Depois sorrimos cheios de timidez,
baixamos os olhos, os dois meio embriagados um com o outro, sem ligar
para as pessoas à nossa volta, sabe?
— Sei.
— E começamos a olhar um para a mão
do outro cheios de volúpia. Uma volúpia de mãos, de braços, está
entendendo? Testando cada articulação, examinando cada pinta. Você
sabe como é, esse momento em que de uma hora para a outra você
ganha acesso ao corpo da outra pessoa, que alegria, como se estivesse
do lado de fora do portão de uma feira mundial de queijos, desses
feitos de leite mesmo e não de sêmen de morcego, sabe, de leite de
vaca, e de repente abrissem o portão e você pudesse ficar correndo
de um lado pro outro na feira esbarrando nos queijos todos, pegando
tudo na mão! Meu Deus!
— Acredite, sei bem como é.
— Nunca mais a vi, mas não esqueço
daquela mão, daquela mão que beijei tantas vezes, que mordisquei e
fiquei olhando.
O camelô colocou devagar as fotos na
pasta e disse:
— Deixa só eu checar mais uma vez onde
ficavam as pintas. Aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
— Esta aqui mais aqui.
O camelô anuiu, fez uma vênia e foi
embora.
Aquele era um domingo à tarde e a rua
estava meio parada, de modo que ele encurtou o dia e foi direto para
a casa velha onde morava desde a juventude na companhia de Kató, uma
mulher de um metro e trinta que o fazia feliz exclusivamente com a
prática de massagens no couro cabeludo acompanhadas de fofocas e
indiretas de que não estava recebendo sexo o suficiente – uma
relação estranhamente deliciosa para as duas partes, e cultivada
com calma e refinamento.
Chegando em casa evitou Kató que
fofocava com a irmã na cozinha e subiu para o sótão onde
imediatamente começou a procurar pela foto da mão da ex-namorada do
velhinho, procurando na gaveta “MÃO, direita, do antebraço à
(1934-37)”. Ficou sentado no chão durante três horas vendo com
calma fotos de mãos bonitas de unhas bem-cuidadas, examinando as
combinações de pintas. A certa altura a dor nas costas o forçou a
se deitar no chão de madeira e a continuar examinando as fotos
naquela posição, de vez em quando desviando os olhos para o teto
inclinado e pensando nas mãos da sua vida, nas mãos que tinha
apertado e mordido também.
Na terça encontrou o velhinho na mesma
mesa, dessa vez tomando uma sopa de cebola.
Com uma vênia e um floreio depositou a
foto na mesa do velhinho.
— Nos esforçamos sempre para agradar.
O velhinho agarrou a foto com seus dedos
sujos de sopa e começou a gritar pateticamente, Erzsébet!,
Erzsébet!, e beijava a foto e chorava, e as lágrimas que saíam de
seus olhos nunca pingavam no chão porque se perdiam nas rugas e
sumiam para sempre, como Erzsébet e suas mãos, como Erzsébet e
suas cinco pintas no antebraço, como Erzsébet e a juventude –
miraculosamente reconstituídas numa foto P&B 15x27 de qualidade
erótica indiscutível.
— Vai querer também a foto da jogadora
de xadrez descalça?
— Ah sim, né — disse o velhinho
limpando a cara com a manga. — Mas faz desconto?
Dia após dia e foto após foto
reconstituiu o velhinho, com a ajuda do camelô, o corpo todo de
Erzsébet, e todas as suas cento e duas pintas. Erzsébet estava lá
na mesa do café Philidor fatiada em vinte e cinco fotos.
Mesmo o camelô se apaixonou um pouquinho
por Erzsébet. E ficavam os dois, camelô e camponês, passando as
fotos de um para o outro por entre o vapor da sopa de cebola,
calados, corteses, um pouco tristes.
Alexandre Soares Silva, in O Homem que Lia os Seus Próprios Pensamentos
Nenhum comentário:
Postar um comentário