domingo, 24 de outubro de 2021

História

Minha opinião sobre a monarquia? Melhorou muito depois que comprei um casal real – autênticos rei e rainha francos – numa loja de animais em Moema, tendo ido para a loja com a intenção de comprar periquitos, veja você, mas mudando de ideia ao ver o Rei Clódio e a Rainha Basina numa gaiola, sentados em jornal sujo, me olhando por entre as grades com grandes olhos monárquicos e tristes.
Passeio com eles todas as noites agora, por ruas tranquilas – eles afobados, se enforcando na coleira, e sempre procurando outros reis e rainhas muitas esquinas adiante, para poder gritar com ódio ou com saudade, conforme o caso. Eu me preocupo porque, alguns quarteirões depois da delegacia de polícia, um moleque sempre sai para passear com seu grande Napoleão solto e sem coleira – e nesses momentos sou eu que tenho que erguer o Rei Clódio e a Rainha Basina acima da minha cabeça, ou colocá-los em cima do capô de um carro estacionado, enquanto o Napoleão dá saltos tentando alcançá-los, gritando xingamentos em francês, e o molequinho imbecil vem correndo colocar uma coleira nele sem nem jamais pedir desculpas.
Mas de madrugada, de madrugada nos enrodilhamos no sofá para ver filmes antigos, e me sinto feliz vendo filmes de Hitchcock enquanto acaricio os flancos dos monarcas. Quando paro um segundo de acariciar circularmente um quadril com o indicador ou de fazer cafuné no espacinho de cabelo entre a circunferência da coroa, eles estendem suas mãos alongadas pedindo que eu continue.
Às vezes, uma vez por mês, ou menos ainda, noto neles um olhar de espanto, como se percebessem de repente a condição em que se encontram e o quanto decaíram da sua posição anterior de pompa e glória. Olham chocados para os restos de ração nas roupas reais, e as coleiras nos pescoços, e a pobreza geral do apartamento em que vivemos.
Mas logo depois alguma cena interessante acontece no filme – o rosto de Grace Kelly se aproxima do rosto de James Stewart adormecido, ou pássaros soltando guinchos eletrônicos voltam a atacar a escola de Bodega Bay – e eles acompanham comigo o filme até o fim, esquecidos de tudo que foram e de tudo que viveram; e (tenho certeza) felizes, à sua maneira.

Alexandre Soares Silva, in O Homem que Lia os Seus Próprios Pensamentos

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