domingo, 24 de outubro de 2021

Desilusões – Vãs promessas de felicidade – Dores sem tréguas e sem descanso, metamorfose do sofrimento: a miséria e o tédio – A vida é um espetáculo tragicômico, sob o reino do acaso e do erro – O Inferno de Dante e o inferno do mundo – Último alvo e último naufrágio

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Sentimos a dor, mas não a ausência da dor; sentimos a inquietação, mas não a ausência da inquietação; o temor, mas não a segurança. Sentimos o desejo e o anelo, como sentimos a fome e a sede; mas apenas satisfeitos, tudo acaba, assim como o bocado que, uma vez engolido, deixa de existir para a nossa sensação. Enquanto possuímos os três maiores bens da vida – saúde, mocidade e liberdade – não temos consciência deles, e só os apreciamos depois de os termos perdido, porque esses também são bens negativos. Só notamos os dias felizes da nossa vida passada depois de darem lugar aos dias de tristeza… À medida que os nossos prazeres aumentam, tornam-nos cada vez mais insensíveis; o hábito já não é um prazer. Por isso mesmo a nossa faculdade de sofrer é mais viva; todo hábito suprimido causa um sentimento doloroso. As horas correm tanto mais rápidas quanto mais agradáveis são, tanto mais demoradas quanto mais tristes, porque o gozo não é positivo, mas sim a dor, cuja presença se faz sentir. O aborrecimento dá-nos a noção do tempo, a distração tira-a. O que prova que a nossa existência é tanto mais feliz quanto menos a sentimos: de onde se segue que mais vale vermo-nos livres dela. Não se poderia absolutamente imaginar uma grande e viva alegria, se essa não sucedesse uma grande miséria, porque nada há que possa atingir um estado de alegria, serena e durável; o mais que se consegue é distrair, satisfazer a vaidade. É por esse motivo que todos os poetas são obrigados a colocar os seus heróis em situações cheias de ansiedades e de tormentos, a fim de os livrarem delas: drama e poesia épica só nos mostram homens que lutam, que sofrem mil torturas, e cada romance oferece-nos, em espetáculo, os espasmos e as convulsões do pobre coração humano. Voltaire, o feliz Voltaire, que tão favorecido foi pela natureza, pensa como eu, quando diz: “A felicidade não passa de um sonho, só a dor é real”; e acrescenta: “Há oitenta anos que a experimento. Não sei fazer outra coisa senão resignar-me, e dizer a mim mesmo que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, e os homens, para serem devorados pelos pesares”.
A vida de cada homem, vista de longe e do alto, no seu conjunto e nas fases mais salientes, apresenta-nos sempre um espetáculo trágico; mas se a analisarmos nas suas minúcias, tem o caráter de uma comédia. O decurso e o tormento do dia, a incessante inquietação do momento, os desejos e os receios da semana, as desgraças de cada hora, sob a ação do acaso que procura sempre mistificar-nos, são outras tantas cenas de comédia. Mas as aspirações iludidas, os esforços baldados, as esperanças que o destino esmaga implacavelmente, os erros funestos da vida inteira, com os sofrimentos que se acumulam e a morte no último ato, eis a eterna tragédia. Parece que o destino quis juntar a irrisão ao desespero da nossa existência, quando encheu a nossa vida com todos os infortúnios da tragédia, sem que possamos sequer sustentar a dignidade das personagens trágicas. Longe disso, na ampla particularidade da vida, representamos inevitavelmente o mesquinho papel de cômicos.
É verdadeiramente incrível como a existência da maior parte dos homens é insignificante e destituída de interesse vista exteriormente, e como é surda e obscura sentida internamente. Consta apenas de tormentos, aspirações impossíveis. É o andar cambaleante de um homem que sonha por entre as quatro épocas da vida até a morte, com um cortejo de pensamentos triviais. Os homens assemelham-se a relógios a que se dá corda e trabalham sem saber porque; e sempre que vem um homem a este mundo, o relógio da vida humana recebe corda de novo para repetir mais uma vez o velho e gasto estribilho da eterna caixa de música, frase por frase, compasso por compasso, com variações quase insensíveis.
Cada indivíduo, cada rosto humano e cada existência humana são um sonho, um sonho efêmero do espírito infinito da natureza, da vontade de viver persistente e teimosa, não uma imagem fugitiva, que desenha na página infinita do espaço e do tempo, que deixa subsistir alguns instantes de uma rapidez vertiginosa, e que logo apaga para dar lugar a outras. Contudo, e é esse o lado da vida que faz pensar e refletir, urge que a vontade de viver, violenta e impetuosa, pague cada uma dessas imagens fugitivas, cada uma dessas fantasias vãs, ao preço de dores profundas e sem número, e de uma morte amarga, por muito tempo temida, e que afinal chega. Eis porque o aspecto de um cadáver nos torna subitamente sérios.
Onde iria Dante procurar o modelo e o assunto do seu Inferno senão em nosso mundo real? E, contado, é um perfeito inferno que ele nos pinta. Ao contrário, quando ele tratou de descobrir o céu e os seus gozos, encontrou-se frente a uma dificuldade invencível, justamente porque o nosso mundo nada oferece de análogo. Em lugar das alegrias do Paraíso, viu-se reduzido a dar-nos parte das instruções que lhe deram os seus antepassados, a sua Beatriz e diversos santos. Daqui se deduz claramente que espécie de mundo é o nosso.
O inferno do mundo excede o Inferno de Dante, no ponto em que cada um é o diabo do seu vizinho; há também um arqui-diabo superior a todos os outros, é o conquistador que dispõe milhares de homens em frente uns dos outros e lhes brada: “Sofrer, morrer é o vosso destino; portanto fuzilem-se, canhoneiem-se mutuamente!”, e eles assim procedem.
Se fosse possível pôr diante dos olhos de cada um as dores e os espantosos tormentos aos quais a sua vida se encontra incessantemente exposta, um tal aspecto enchê-lo-ia de medo; e se se quisesse conduzir o otimista mais endurecido aos hospitais, aos lazaretos e aposentos de torturas cirúrgicas, às prisões, aos lugares de suplícios, às pocilgas dos escravos, aos campos de batalha e aos tribunais criminais; se se lhe abrissem todos os antros sombrios onde a miséria se acolhe para fugir aos olhares de uma curiosidade fria, e se por fim o deixassem ver a torre de Ugolino, então, com certeza, também acabaria por reconhecer de que espécie é este melhor dos mundos possíveis.
Este mundo, campo de carnificina onde entes ansiosos e atormentados vivem devorando-se uns aos outros, onde todo animal carnívoro torna-se o túmulo vivo de tantos outros, e passa a vida numa longa série de martírios, onde a capacidade de sofrer aumenta na proporção da inteligência, e atinge portanto no homem o mais elevado grau; este mundo, quiseram os otimistas adaptá-lo ao seu sistema, e apresentá-lo a priori como o melhor dos mundos possíveis. O absurdo é evidente. – Dizem-me para abrir os olhos e fitá-los na beleza do mundo que o sol ilumina, admirar-lhe as montanhas, os vales, as torrentes, as plantas, os animais, que sei eu! Então o mundo é uma lanterna mágica? Certamente que o espetáculo é esplêndido à vista, mas representar aí um papel é outra coisa. Após o otimista surge o homem das causas finais; esse exalta a sábia ordem que preserva os planetas de se chocarem no seu percurso, que impede a terra e o mar de se confundirem, e os mantém devidamente separados, que faz com que o resto não se conserve num gelo eterno, ou seja, consumido pelo calor, que, devido à inclinação da eclítica, não permite à primavera ser eterna e deixa amadurecer os frutos etc. …Mas tudo isso são simples conditiones sine quibus non. Porque, se deve existir um mundo, se os seus planetas devem durar, embora, um período igual àquele que o raio de uma estrela fixa e afastada leva para chegar até eles, e se não desapareceu como o filho de Lessing logo após o nascimento, era preciso que as coisas estivessem mal arquitetadas para que a base fundamental ameaçasse a ruína. Cheguemos agora aos resultados dessa obra tão exaltada, consideremos os atores que se movem nesta cena tão solidamente formada: vemos a dor aparecer ao mesmo tempo que a sensibilidade, e aumentar à medida que essa se torna inteligente; vemos o desejo e o sofrimento caminhando par a par, desenvolverem-se sem limites, até que por fim a vida humana apenas oferece assunto de tragédias ou de comédias. Posto isso, se houver sinceridade, ter-se-á pouca disposição para entoar a Aleluia dos otimistas.
Se um Deus fez este mundo, eu não gostaria de ser esse Deus: a miséria do mundo esfacelar-me-ia o coração.
Imaginando-se um demônio criador, ter-se-ia portanto o direito de lhe gritar mostrando-lhe a sua obra: “Como ousaste interromper o repouso sagrado do nada para fazer surgir uma tal massa de desgraças e de angústias?”.
Considerando a vida sob o aspecto do seu valor objetivo, é pelo menos duvidoso que ela seja preferível ao nada; e eu diria até que se a experiência e a reflexão se pudessem fazer, elevariam a voz em favor do nada. Se batêssemos nas pedras dos túmulos para perguntar aos mortos se querem ressuscitar, eles abanariam a cabeça. É também essa a opinião de Sócrates na apologia de Platão, e até o amável e alegre Voltaire não pôde deixar de dizer: “Aprecia-se a vida; mas o nada também tem o seu lado bom”; e ainda, “Não sei o que é a vida eterna, esta, porém, é um mau gracejo”.
Querer é essencialmente sofrer, e como o viver é querer, toda a existência é essencialmente dor. Quanto mais elevado é o ser, mais sofre… A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida… A vida é uma caçada incessante onde, ora como caçadores, ora como caça, os entes disputam entre si os restos de uma horrível carnificina; uma história natural da dor que se resume assim: querer sem motivo, sofrer sempre, lutar sempre, depois morrer e assim sucessivamente, pelos séculos dos séculos, até que o nosso planeta se faça em bocados.

Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo

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